28 janeiro 2006

Almoço no clube, 1


— …abusou um bocadito do molho mas, enfim, come-se…
(Pausa.) Ele contou-me aquela sua ideia da colonização ideológica do teatro. Lembra-se?
— Ah, ele falou-lhe disso? (Mastiga.)
— Por alto. (Serve-se da cerveja.) Fiquei curioso.
— Não se importa de me passar o sal? (Põe sal nas batatas fritas.) A ideia, no fundo, é simples: depois do 25 de Abril, em vez de se cultivar a liberdade que permitia fazer tudo o que se quisesse em cima dum palco, fez-se do teatro instrumento ideológico. O modelo foi o Brecht, basicamente porque o Brecht era proibido antes do 25 de Abril.
— Hmmm… (Mastiga.) Só isso?
— Não! Esta história é comprida… (Aplica-se a cortar o bife.) O movimento geral foi este: tudo o que não tivesse intenção política deliberada foi condenado. O Brecht, para eles, era a vanguarda e a vanguarda era o teatro ao serviço da revolução ou coisa que o valha. Uma desgraça. Claro que não houve revolução nenhuma, nem podia haver, que passasse pelo teatro. (Chega uma garfada de bife à boca.)
— Hmmm…
(Mastiga lentamente. Depois pára de mastigar.) De certa maneira, o teatro foi o último reduto do neo-realismo. Aquela coisa da distanciação brechtiana tornou-se um imperativo moral, mais do que estético. O que não fosse distanciado era “burguês” e toda a urgência estava em atacar o “burguês”. A simplificação chegou a este ponto!
— Estou a ver… Mas coma, coma!
(Durante talvez um minuto comem em silêncio.)
— Repare que o problema não está propriamente no Brecht, que é apenas um dramaturgo no meio de muitos, nem nisso da distanciação, que é só uma ideia entre outras. O problema está no imperativo, na norma, no dogma em que tudo isso se converteu. Apanhou-se esse vício horrível das normas e dos dogmas, percebe? O teatro a querer doutrinar as massas ou, como se diz para aí, a pôr as pessoas a “pensar”… Olhe, não vamos mais longe: ainda há dias vi no jornal uma figura conhecida do meio a dizer que a função do teatro é educar. Educar, imagine! (Gargalhadas.)
— Um horror, o didactismo… Nunca terão lido o Shakespeare?
— Com ideias daquelas não há Shakespeare que resista. (Pausa.) Mas por que raio é que ele insiste nas alcaparras? Ele sabe que eu detesto alcaparras!