11 dezembro 2005

Jornalismo revolucionário

O «Mil Folhas» do Público trazia ontem um artigo — duas páginas assinadas pela jornalista Ana Sá Lopes — com o espantoso título: «O livro que revolucionou a autobiografia em Portugal». Dispus-me a ler, não porque interessado no livro em causa — Bilhete de Identidade, de Maria Filomena Mónica —, antes animado da esperança de ficar a saber alguma coisa a respeito do género revolucionado. Há autobiografia em Portugal, e em tradição assim tão continuada e corpus assim tão estável que possa ser «revolucionada»? Confesso que a minha inclinação literária conservadora ficou abaladita: se há qualquer coisa como uma «autobiografia portuguesa», não gostaria nada de a ver agitada, revoluta, virada do avesso… O primeiro parágrafo começava reiterando o título, e até dizia mais: Maria Filomena Mónica, que já tinha revolucionado o género biográfico com o livro sobre Eça, revoluciona agora o autobiográfico. Esperava-se então alguma descrição, ainda que breve, da autobiografia (admitindo que a revolução na biografia já transitou em julgado…) antes e em Portugal, até com menção de uma ou outra autobiografia mais significativa; e esperava-se outra descrição, supostamente mais demorada, do que faz deste um livro revolucionário. Pois não se encontra nada —absolutamente nada. Logo o segundo parágrafo enceta o que a jornalista fará até ao penúltimo: um resumo do livro, com uma citação aqui e ali, ou seja, uma biografia curta da autora. É uma amostra do livro. O penúltimo parágrafo declara que o «auto-retrato» de Maria Filomena Mónica («auto-retrato» e «autobiografia» são a mesma coisa? e calham bem a um livro que a própria autora incluiu, não sei se bem se mal, no género «memórias»?) é «bibliografia indispensável para a reconstituição de uma época», e assegura que «a polémica em curso na blogosfera e na imprensa sobre a ‘legitimidade’ da revelação de casos afectivos é, seguramente, uma questão menor» (querendo com isto decerto dizer que é menor a questão que ocupa a dita polémica…).
Nada mais: a jornalista faz uma afirmação extraordinária (e de cujas consequências nem parece aperceber-se) e dispensa-se de sequer tentar justificá-la. Qual a diferença entre isto e a publicidade? Ou será também este o artigo que revoluciona o «jornalismo cultural»?
Como não preferir os blogues? até aqueles que designam o livro como «história duma beta que por acaso se tornou intelectual»… Curioso, não? Os blogues é que deviam albergar a possibilidade de dizer qualquer coisa sem o mínimo protocolo de comprovação. Qualquer coisa, do insulto vulgar à proclamação absolutamente infundada. Os blogues — não os suplementos culturais de jornais ditos de referência. Estes, pelo contrário, deveriam esforçar-se por sugerir que não dizem qualquer coisa, que não permitem que os seus jornalistas imprimam nenhuma afirmação desguarnecida de esforço de comprovação, que o jornalismo que praticam não se confunde com propaganda, publicidade, favoritismo vulgar…
Se calhar, é exigir demasiado… quem, no seu bom senso, pode sequer tentar argumentar a favor de uma frase como «o livro que revolucionou a autobiografia em Portugal»? Não é mais simples escrevê-la? … mais simples, mais eficaz… mesmo suspeitando que talvez seja o mesmo que dizer, dum livro de poesia, que «revolucionou o soneto em Campo de Ourique»…