21 outubro 2005

Reposições ne varietur - 5

— Mas que melancólico o vejo, caro Groucho...
— Uma tristeza literária, imagine. Nunca me tinha acontecido.
— Como assim, literária?
— Calcule o senhor que, por uma vez na vida, estava no atrevimento de publicar um escrito, coisa de pouca monta, naturalmente, mas ainda assim minha, compreende? E vai daí, no ponto em que me preparava para a enviar com pedido de publicação, leio um texto que era, palavra por palavra e vírgula por vírgula, a reprodução das minhas ideias!— Não me diga! E quem o escreveu?
— Um tal Vasco Pulido Valente. Hoje mesmo, na última página do Público, pode o senhor ler a crónica que me devolveu, contrafeito, ao silêncio de sempre. E, por favor, não me acrescente a infelicidade revelando-me que já a leu...
— Lamento não poder mentir-lhe: já a li, de facto. Sextas, sábados e domingos levanto-me sempre cedo para ler e coleccionar as crónicas do Vasco Pulido Valente. Sou admirador incondicional desse que é o único cronista legível em jornais portugueses. Mas... não entendo. A crónica de hoje é sobre a morte de Álvaro Cunhal e, se não me engano, o meu caro Groucho tem dito coisas muito diversas sobre tal assunto em conversas que tenho ouvido por aqui. Não o supunha em concordância virtual com o Pulido Valente!
— Vê-se que me conhece mal. Nessas conversas, se tivesse bom tímpano, perceberia o meu amigo as afinidades que me ligam a uma famosa personagem de cinema: já ouviu falar de um tal Zelig? Não se recorda? A amnésia é um disfarce corrente da ignorância, espero que não seja o caso. Eu sou como o Zelig, no exacto sentido em que o Zelig costumava ser como aqueles com quem estava sem que, em si mesmo, chegasse a ser alguma coisa. Deixo-me contagiar pela opinião dos meus interlocutores a ponto de já nem saber onde eles acabam e eu começo. Agora a novidade, o engulho, está nisto de eu me confundir com opiniões que nem conheço! Aqueles paralelos de Álvaro Cunhal com Estaline, com Hitler, com Salazar são tal e qual os que eu escrevera, indignado com a onda de elogios estereotipados ao velho líder do PCP. As «virtudes» de Cunhal não se distinguem, como esse Vasco mostra, das que se encontram nos grandes ditadores, nos tiranos mais abjectos, no pior que o século XX deu à História. Citar a crónica de hoje, digo isto sem exagero, seria citar-me no espírito e na letra, veja o senhor a desgraça!
— Ora, não me vai dizer que até o título da crónica saiu igual ao do seu texto? «Portugal não se respeita»: era este o seu título?
— Sem tirar nem pôr! Absolutamente! A desgraça, meu caro, a desgraça é essa!— A desgraça é o título?...
— Claro. Porque o título é que tornava o texto meu, irrefutavelmente meu. Era a marca da minha ironia, porque sem ironia eu nem sei escrever. E agora, roubado por esse Vasco, tornou-se numa coisa séria, numa tese, que horror! E a tese, veja o senhor a miséria, nem sequer é dele, falta-lhe o ferrete da originalidade que a minha pena lhe gravara.
— Não é dele?
— Não e o senhor devia sabê-lo. Pouco me bastou investigar e logo tirei a limpo que, escrita por tal autor, a frase «Portugal não se respeita» significa, para todos os efeitos, «Portugal é uma choldra!». O meu texto era original e actual. Publicada como e por quem foi, aquela crónica é mais velha do que era o próprio Cunhal na hora em que morreu. Enfim, estão bem um para o outro...

GR, 17 de Junho de 2005