Postal sem sobrescrito dirigido a Clara Antunes, casmurra
Caríssima Clara:
Vejo que deixou ontem, aqui no clube, um bilhetinho onde manifesta preocupações ou, ao menos, se entrega a elucubrações sobre o estado actual da minha pessoa. Diz, em particular, que eu “devo andar distraído” e que “quando acordar”, não sei quê, não sei quê, e tudo a propósito de umas frases que eu deveria ter lido e que, supostamente, me desagradariam.
Ignoro que intenção a moveu ao certo. Terá querido impressionar-me e aos restantes casmurros com o conhecimento das idiossincrasias de cada um de nós, começando pelas minhas? Percebeu, se assim for, que sou distraído e que me incomodo com atitudes públicas grosseiramente anti-intelectuais. Parabéns. A continuar por esse rumo, ninguém aqui terá segredos que escapem à sua perspicácia. Ou terá antes querido sublinhar a sua cumplicidade com as reservas que em tempos exprimi acerca das ideias e do discurso do Dr. Pacheco Pereira? Esta hipótese tem consequências mais complicadas, uma vez que poderia perfeitamente ter marcado a sua posição sem necessitar do meu aval (se de aval se tratou). Como sabe, o nosso clube preza enormemente o espírito individualista e a liberdade de cada um pensar e agir segundo as suas próprias boas ou más inclinações (sim, sim, as más também!).
Eu quero crer que a sua inclinação, nesta circunstância, foi boa, se não mesmo excelente. Chamou-me à liça assim ao jeito de quem tem saudades. Comoveu-me, é inútil esconder-lhe a verdade. Ocorre, porém, que esta nossa facilidade de entendimento afectivo (se assim me posso exprimir) encontra o obstáculo, quem sabe previsível, de nem toda a gente compreender que é disso que se trata. Como a Clara diria, eu explico-me.
Muitos dos nossos confrades nesta agremiação aproveitaram de imediato para me interrogar sobre certa falta de assiduidade que tiveram mais facilidade de me apontar do que a eles próprios (como se passassem cá a vida). Naturalmente, reagi e também lhe confidencio que nem sempre as minhas reacções se pautam pela brandura. Numa palavra, houve zangas. Decerto foram efeitos colaterais do seu bilhetinho, que não intencionais, mas foram. Enfim, há-de passar. Mais grave foi o que tive de ouvir do nosso Groucho. Segundo ele, eu só cá venho para colar fotografias nas paredes e nunca antes ouvira eu que tal coisa o apoquentasse. Pois que sim, que isto parecia uma espelunca com as fotos por aí espalhadas, que dava mau aspecto, que era uma desarrumação, teve mesmo o desplante de me garantir que as imagens nem sequer eram do melhor gosto. Na parte final, tenho a certeza que me levantou a voz, calcule a Clara! Neste momento, já entrei em despesas para emoldurar as fotografias, a fim de não se concretizar a ameaça de irem todas para o lixo.
Porque estou eu a contar-lhe tais agruras? Muito simples. Com o intuito de lhe pedir que, da próxima vez, evite recados públicos. Tire-me da distracção, mas pessoalmente. Por qualquer motivo obscuro, a conjuntura anda propícia a crises da mais diversa ordem e eu gostaria de evitar que elas afectassem o nosso clube. Fora isso, estou inteiramente de acordo consigo: se há coisa que Pacheco Pereira não é, é aquilo a que legitimamente se pode chamar um “intelectual”. Contudo, muito apreciaria que a Clara elaborasse um pouco a explicação que deu para essa evidência. Pode ser?
Com toda a cordialidade,
Gustavo Rubim
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