09 outubro 2005

Ouvir dizer

— Desculpe interrompê-lo, mas é verdade que em tempos fez na sua Faculdade um seminário sobre a noção de testemunho?
— Eu?! Não, Groucho, informaram-no mal. Mas a que vem isso?
— Pensei que, enquanto especialista, podia esclarecer-me a respeito dum episódio que me deixou perplexo.
— Não sou especialista, mas sou curioso… um episódio?! conte, vá.
— Resumindo, é isto. O cronista Eduardo Prado Coelho foi ao Brasil, participar num congresso de professores de literatura portuguesa. Sabe disso, não?
— Sim, li qualquer coisa. E então?
— Depois escreveu sobre o assunto, como é hábito dele. Pelo meio, informava que João Barrento lá tinha estado também, apresentando um panorama pessimista da literatura portuguesa actual.
— Ah, sim, li no «Mil Folhas» um artigo do João Barrento a esclarecer que não era bem isso…
— Exacto. Mas não é esse o ponto: o ponto, e aqui peço a sua contribuição analítica, porque eu não entendo, é que o dito Prado Coelho, no mesmo «Mil Folhas», confessava ontem por sua vez, e muito simplesmente, que não tinha assistido à comunicação de Barrento, que se fiara na impressão que lhe fora transmitida por um «colega brasileiro». Afinal até concorda com Barrento, não devia era ter dado ouvidos ao colega…! Desculpe a minha ingenuidade, mas isto acontece muito? Tanto que seja quase irrelevante fazer artigos, e sobre coisas que aconteceram longe, repetindo o que se ouve dizer a outros?!
— Percebo porque se lembrou do testemunho… Mas olhe que pensar assim vale por dar excessiva importância ao assunto. Não se trata de testemunho, mas de vulgar decoro…
— Decoro?!
— Sim, repare que ficaria mal escrever qualquer coisa como isto: «Estive há dias num congresso, no Brasil, onde conversei com imensos colegas, portugueses e brasileiros, enquanto se iam sucedendo comunicações. Aliás, também apresentei uma, a que toda a gente assistiu. Ouvi dizer que o João Barrento fez uma coisa meio pessimista sobre a literatura portuguesa. Não tive oportunidade de conversar com ele sobre isso, porque há muita gente a querer falar comigo, mas aqui fica a informação, foi o que me disseram.»
— Realmente indecoroso.
— Extremamente indecoroso.