We will always love you, Lady Day
- Que orquestra sumptuosa, Groucho! Que está o meu amigo a ouvir?
- Lady in Satin, Billie Holiday com orquestra dirigida por Ray Ellis, 1958.
- Caramba! Como é que não reconheci? Já não oiço isso há tanto tempo! Tenho em vinil, sabe?, com aquela foto sublime da Holiday na capa grande. Muitas horas passei eu a ouvir esse disco e a contemplar a capa… Esta coisa dos CD’s deu cabo da arte gráfica dos LP’s, que tinha sido levada a um requinte inigualado por altura do advento do CD. Tenho de ver se me lembro de emoldurar a capa para pôr na parede.
- Estou a ver que estamos de acordo em matéria de objecto de adoração. Mas já viu a nova edição, remasterizada, com Bonus Tracks…
- Pergunto-me sempre se em português será Traques de Bónus…
- Com franqueza, senhor! E olhe que por uma vez essa mistificação dos Bonus Tracks vale bem a pena, pois podemos assistir às várias tentativas dela para escolher o fraseado mais adequado a, por exemplo, «The End of a Love Affair». Podemos mesmo ouvi-la a cantar, numa dessas versões, a cappella. Uma lição brutal de acentuação, gestão do tempo, coloratura (e isso apesar do achatado da voz, por aquela época…), etc. É como ouvir a Callas: a mesma inteligência, a mesma arte dramática. Mas uma voz bem mais bonita do que a da Callas, apesar do desgaste.
- Mas então, e quanto ao debate eterno sobre esse disco? A voz, convenhamos, é uma sombra do aparelho vocal dos anos 30: achatada, como o Groucho tão bem disse, áspera, aqui e ali, cansada e gasta, o que se nota sobretudo nas frases longas e na dificuldade de as ligar de princípio a fim; o próprio repertório, um tanto comercial; os arranjos um tanto xaroposos…
- Eu quero que o debate se f…!
- Ó Groucho, mas que despropósitos são esses?
- É isso mesmo, senhor, e com as quatro letrinhas bem pronunciadas! Por mim, se quer que lhe digo, este é o disco que eu levaria para a tal ilha deserta. Admitindo que lá houvesse um leitor de CD’s…
- Não sei se seria boa ideia, Groucho. Isso seria uma condenação aos blues mais melancólicos, se me permite a redundância, por todo o período de permanência na ilha… O disco é uma espécie de peça conceptual sobre «The End of Love Affairs», não acha? Muito autobiográfico, no caso dela. Em certas fases da nossa vida pode ser mesmo viciante, e ademais perigoso.
- Não questiono, senhor. Mas para mim, é o que substitui, há muitos anos, as drogas de que a vária humanidade se vai alimentando, década após década: haxixe, coca, ecstasy, o diabo. Tudo concentrado numa só dose: Lady in Satin. Olhe, enfim, digo-lhe só duas coisinhas, a respeito do raio do «debate»: 1) Uma grande cantora é-o até ao fim, e é-o mesmo sem voz ou quase; 2) Ao invés, é possível ser-se um grande cantor quase sem voz (basta pensar em João Gilberto ou Lou Reed), e embora esse não seja o caso da Billie Holiday neste disco, o argumento deveria ser bastante para acabar com as aleivosias.
- Mas as canções são um tanto comerciais, não acha?
- Não, não acho. A serem classificáveis desse modo, teríamos de concluir que o grosso do repertório da Holiday foi sempre comercial, o que aliás não anda longe da verdade. Apesar de «Strange Fruit» e dos vários blues que foi cantando desde os anos 30, ela sempre se distinguiu nas canções de amor do Songbook americano. Por que carga de água só nos anos 50 é que isso está errado, e não nos anos 30 e 40?
- Bom, rendo-me. Deixe cá ouvir então esta. «The End of a Love Affair», não é? A minha preferida, creio. A entrada dela é fabulosa, reparou? Parece tímida, atrasada em relação ao tempo e contudo é por isso mesmo que a versão é única, pois ela pode gerir depois o resto da frase com uma maior demora e graciosidade. Reparou na pausa, a meio? «So I walk… a little too fast / And I drive… a little too fast». Fabuloso, não é?
- Direi mesmo mais, senhor: fabuloooso. Vai um Gin, em homenagem a Lady Day?
- Homenagem com água no bico, se assim o posso dizer... Mas sim, venha lá um Gin.
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