O Blindfold Test do Groucho (última sessão)
- Ah, menina Clara, nem imagina como me alegra poder ainda integrá-la no naipe de participantes no meu Blindfold Test!
- Parece-me uma reacção um tanto excessiva e sobretudo prematura…
- Ah não, menina Clara! Pior do que isto tem sido não é possível.
- Admito, mas se não se importa, Groucho, gostava de lhe colocar uma questão preliminar.
- Com certeza, menina Clara. Ao seu dispor, agora e sempre!
- Pois, a questão é justamente a forma como o Groucho me trata aqui no clube. «Menina» Clara para aqui e para ali, «agora e sempre» e outras fórmulas de uma cortesia um tanto deslocada… Não posso deixar de notar que trata os restantes casmurros por «Senhor» e a mim me destina a «Menina». Como também não posso deixar de notar essa cortesia que apenas reserva para mim, pois com os outros membros do clube a coisa descamba com frequência para uma certa agressividade.
- Mas, Menina Clara… Quero dizer: Senhora Dona Clara. Perdão: Senhora Clara… É tudo com a melhor das intenções, peço-lhe que acredite!
- Não ponho em causa, Groucho. E nem me agrada um tratamento tão formal como esse de Senhora (quanto à Senhora Dona, desculpe lá, mas isso é coisa do Estado Novo). Agora, Menina, atendendo à minha idade e ao meu estatuto de ex-donzela há muito, é que me custa a suportar. Prefiro que me chame apenas Clara. E que guarde esses excessos de deferência para outras pessoas, pois a mim isso incomoda-me. Quer como mulher, que aprecia outros tipos de tratamento (não sei se me faço entender…), quer como estagiária deste clube…
- Mas, Menina… Perdão: Clara. Deixe-me protestar a minha inocência. Eu respeito-a de corpo e alma!
- Agrada-me que também meta aí o corpo, mas sucede que eu tendo a rejeitar manifestações de respeito desse teor. E de corpo e alma, também.
- Eu… Por favor… A Menina… Perdão, a Clarinha. Perdão! Mil vezes perdão! A Clara deixa-me sem fala.
- Se calhar, enquanto está sem fala eu posso ir lendo o poema, não?
- O poema?!... Ah sim, o poema! Aqui está, aqui está. Faça a Menina o obséquio… perdão, Clara…
- Obrigada. Ora deixe cá ver.
AS DUAS IRMÃS CHOLMONDELEY DA TATE GALLERY
Biodegradáveis como a arte
Macabras como fotocópias
de Maria e do bebé
Limão do Entroncamento
dupla esfinge
para os turistas
Quatro trompas de Falópio contentes
que nem ratos
(Eram gémeas
e deram à luz
no mesmo dia
do século XVII)
- Se a Clara me permite, eu gostava de dissipar…
- Escusa de dissipar o que quer que seja sobre o poema pois sei bem quem é o autor. Ou antes, a autora.
- Como?... Pra dizer a verdade, não era isso que eu queria dissipar, mas… Sabe quem é a autora?
- Claro, é fácil: é da Adília Lopes. Não me lembro ao certo do livro, mas é um dos melhores dela.
- Nem acredito que alguém tenha conseguido acertar na resposta! A Menina, de facto! Perdão… Mil vezes perdão!... Bom, o livro é o Clube da Poetisa Morta, de 1997.
- É esse, é. A Adília é uma das nossas grandes poetas na área da poesia ecfrástica (o que nem é bem o caso aqui) e, mais latamente, da reflexão sobre as artes. Claro, fala-se mais do Graça Moura, que é uma espécie de Museu ambulante e falante (é uma espécie de «Abrupto» avant la lettre…), mas olhe que ela… Deixe-me ir ali à Biblioteca buscar a Obra dela para lhe ler um excerto a propósito. [Levanta-se e percorre as estantes].
- [Groucho tartamudeia, sem parar] Pior a emenda que o soneto! Só fazes asneiras, grande palerma! Agora, aquela do ex-donzela há muito é que eu não esperava… E eu a julgá-la a Beatriz…
- [Clara regressa] Ora oiça este excerto de um poema da Adília chamado «Um figo»: «Deixou cair a fotografia / um desconhecido correu atrás dela / para lha entregar / ela recusou-se a pegar na fotografia / mas a senhora deixou cair isto / eu não posso ter deixado cair isto / porque isto não é meu / não queria que ninguém / e sobretudo um desconhecido / suspeitasse que havia uma relação / entre ela e a fotografia / era como se tivesse deixado cair / um lenço cheio de sangue / porque era ela quem estava na fotografia / e nada nos pertence tanto como o sangue». Que tal, menino Groucho?
- A Menina… Perdão… A Clara brinca com coisas sérias. Para o meu gosto, a analogia entre a representação e o sangue é um bocado forte. Ou extemporânea.
- Acha? Para uma mulher, a coisa é uma espécie de «universal», sabe? O memento cíclico da nossa condição animal de «ser para a maternidade», o dilema de desejar que isto acabe e saber que, quando acabar, também a juventude do nosso corpo acabará, pois cessará a sua capacidade de renovação. Aliás, sabe o que diz a Adília sobre tudo isto?
- Temo não poder escapar-me…
- Pois não: «quanto a comentários / a poesia e a menarca / são parecidas». Por isso mesmo, vou ser parca nos comentários ao poema dela. Sabe que um dos aspectos mais interessantes da poesia «ecfrástica», lato sensu, da Adília, reside na escolha dos objectos artísticos tratados. O Groucho conhece o quadro em causa?
- As «Cholmondeley Sisters»? Confesso que não.
- Eu mostro-lho aqui no computador. Deixe-me só googlar um pouco… Aqui tem. Diga lá se não é extraordinário!
- Deveras extraordinário…
- Pois é. Os outros tratam de Rafael, Botticelli, El Greco, Goya, as evidências. A Adília descobre isto. E a partir daí, assistimos à manifestação de uma das grandes «figuras» da sua obra: o duplo: «Gémeas», «Dupla esfinge», «Fotocópias», «Quatro trompas de Falópio». Notável, a deflação do sublime feminino naqueles versos «Quatro trompas de Falópio contentes / que nem ratos», não? Diz-se tanta tolice sobre ela, e nunca se diz que é uma «Autora», no sentido em que os jovens turcos dos Cahiers falavam do Hitchcock ou do Hawks: alguém que tem e faz mundo. Mas já agora, e ainda que mal pergunte, Groucho…
- Diga, Men… Clara.
- Não posso deixar de reparar que até aqui o seu teste apenas recorreu a poemas de autores homens. Houve pós-coloniais e tudo, mas sempre homens. Agora, de súbito, é só mulheres: a testada e a poeta.
- Uma coincidência, Clarinha… Perdão, Clara.
- Coincidência? Enfim, o que uma mulher tem de ouvir. Desculpas esfarrapadas, isso sim. O menino Groucho achou é que, sendo uma mulher, seria «simpático» presenteá-la com um poema de uma outra mulher. O altruísmo masculino no seu melhor...
- Garanto-lhe, Clara, que nada disso me passou pela cabeça!
- Pois não, e eu acredito. Mas olhe, sugiro-lhe umas leituras para o fim-de-semana. De Freud. Comece pela Psicopatologia da vida quotidiana. É só sobre lapsos. Mais divertidos do que este seu…
- Volto a garantir que…
- Adeus, Groucho, tenho um comboio para apanhar. Já agora, aproveite e leia alguns poemas da Adília. Vai ver que os vai achar instrutivos.
- Adeus, Clarinha… Perdão, Clara.
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