O Blindfold Test de Groucho
- Nem sabe como lhe agradeço, Sr. Portela, ter aceitado submeter-se ao meu infausto teste…
- Mas não era «Blindfold Test»?!
- Era e é. Só que o teste às cegas tem sido ocasião de tais manifestações de cegueira crítica, e humana, que já lhe vou chamando infausto teste.
- Ah bom, percebo. Ao que sei, ainda ninguém adivinhou a autoria de poema nenhum, não é? O Groucho, pelos vistos, esmera-se nos fundos de depósito poético… Depois, não se espante que a gente não chegue lá.
- Mas, com franqueza, eu entenderia isso perante um grupo de leitores de poesia como os há muitos na blogosfera: sempre prontos a citar poemas de amor ou de circunstância (quase sempre política), e a pô-los a circular naquele regime de partilha de epifanias poético-catárticas em que a net é fértil. Agora, de um grupo de expertos e leccionadores de esquisitices e miudezas várias, já não esperava tanto fracasso, confesso. Para não falar já do mau humor e falta de fair play, bem entendido.
- Bom, bom, não quer que eu me ponha a dizer também mal dos meus colegas de clube, pois não? Para isso, já basta o Groucho. Vamos lá a ver como me safo eu. Tem aí o poema que me coube?
- Sim, senhor. Aqui está. Faça o favor de ler.
[Bem haja, meu Deus, a mulher,]
Bem haja, meu Deus, a mulher,
Baixa de gorda, chupada e alta,
Boa de tetas ou seca,
Ossos sem tutano,
Asmáticas, de pernas umas canas.
Bem haja, toda retraída ou pouco casta,
De pele parda, mão azulada, meu Deus, a mulher
Mesmo esmaltada, no broche.
- Ui, ui, vejo que o registo do seu teste mudou, e de que maneira!
- Confio em que uma pessoa com o seu currículo, até em matéria de rimas fodidas, não se escandalizará com estes versos mais carnais…
- Eu não. Mas olhe que a Clara Antunes é capaz de não apreciar muito… Ou algumas das nossas leitoras mais fiéis.
- Mas porquê, santos deuses? Afinal, trata-se de um elogio incondicional da mulher!
- Não tanto «da mulher» mas antes da mulher «em acto», não? É certo que o acto é cândido, mas, como sabe, a candura de uns é o obsceno de outros.
- Nada mais longe das minhas intenções do que o obsceno…
- Vejo que o Groucho é ainda mais cândido do que eu supunha… Mas enfim, deixe-me cá puxar pelo bestunto. Isto podia ser talvez do Alberto Pimenta: o amor deflacionado pela physis, o corpo degradado pelo mecânico (da cópula ou, neste caso, da felação) e pela idade, a mulher sem maiúscula nem sublime, etc. A chatice é que eu conheço de ginjeira a obra do Pimenta e este poema seguramente não é dele. Até porque não há aqui aquele tratamento repetitivo-serial dele. Estou tramado com isto… O Graça Moura? Também não o estou a ver a cultivar esta estética do feio, embora o veja, sim, a tratar o assunto. Há aquele poeta do Porto que tem um bom livro (o único bom livro dele, a bem dizer) de sonetos porno, o Amadeu Baptista. Será dele?
- Não, lamento. Nem conheço o autor.
- Do Assis Pacheco é que se publicaram também uns poemas porno, já postumamente. Não li o livro (creio que se chama Respiração Assistida, não é?), mas cheira-me que poderia ser.
- Pois eu li e não vi lá este poema, senhor…
- Tão irónico, este querido Groucho. E não será do Jorge de Sena? Daqueles inúmeros livros de poesia póstuma, aonde há coisas assim a tender para o escabroso. Lembro-me de um poema notável sobre o pénis. Ou melhor: sobre os variados tipos de pénis em acto, o que uns prometem e não alcançam, o diverso tipo de inundação que provocam, etc. Que se dane. Aposto que é do Sena!
- O que lhe vale é que a aposta fica mais barata do que a do Totomilhões…
- Também não? Bolas. Humm, desconfio que isto é mas é daquele gajo d’O meu Pipi… O Groucho está mais uma vez a gozar connosco, sugerindo que o texto provém da zona rarefeita da alta poesia e afinal é asneiredo bloguista.
- Seria perfeitamente impensável, senhor, que eu frequentasse um blogue como esse! Ofende-me, aliás, a sugestão. O meu interesse é puramente estético, e nada tem das miúdas discriminações anatómicas que me dizem ser a especialidade desse pioneiro da brejeirice bloguista.
- Não se amofine, homem. E olhe que o tipo do Pipi é um mestre do idioma (e de outras coisas, claro). O seu juízo parece-me francamente preconceituoso. O diabo é que com ou sem Pipi, estou sem munição. Também, numa literatura, e numa poesia, tão desprovidas de hábitos fesceninos, descobrir uma coisa destas é tão difícil como descobrir um poema do Tolentino Mendonça em que não se use a palavra «coração». Nos novos poetas, não estou a ver quem. É só subúrbio e tasca, ou então amores falhados e romantizados… Só se fosse o homem das minúsculas, o valter hugo mãe, mas esse usa uns títulos de estrondo, a gente convence-se de que aquilo é picante e depois, nessa matéria, é antes pólvora seca. O Mexia também não anda por aí, a não ser nalgumas bocas no blogue. Mas nos versos é discreto e polido. Bom, desisto. Diga lá de quem é o poema!
- Não posso deixar de constatar o falhanço sistemático dos membros deste clube em matéria filológica! Lamentável, é o menos que se pode dizer. Pergunto-me a que devem estes senhores a sua reputação na república das letras!
- Deixe-se de moralizações de alguidar e diga lá o nome do autor do poema, raios!
- Ah bom, já cá faltava a agressividade e falta de fair play!
- Mas que grandecíssimo… E se o senhor se remetesse ao seu lugar subalterno neste clube e não abusasse da minha paciência?! Acha que não tenho mais que fazer? Olhe que até tenho um teatro para dirigir! Diga lá de quem é o poema, de uma vez por todas!
- Muito mal anda a república e a universidade… Bom, aqui vai: o poema é de José-Emílio Nelson e integra o livro Penis, Penis, de 1980. Um clássico contemporâneo. Não se percebe que o não conheça, com franqueza.
- Não se percebe é que eu o conheça a si e entre nesta treta do Blindfold Test. Aliás, infausto teste!
- Indeed, Sir, indeed!
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