27 agosto 2005

Monólogo exterior (inquieto)

/…/ que coisa estranha… «tem por aí um lápis à mão?»… e nem sequer precisando, nem usando… parecia desaforo, ou pior, divertir-se à minha custa… só que, só que teria que ter-me ouvido… mas como? como ia ela ouvir-me se falo comigo mesmo, e muito em voz baixa, e quando não está ninguém nos arredores…? pena, oportunidade desperdiçada, porque fiquei interdito com a pergunta despropositada… imaginei a primeira conversa, ou segunda, ou alguma, noutros modos, noutros termos, noutro âmbito mesmo… sim, muito outro, nada de lápis ou desaforo:

— Bom dia, Sr. Groucho, como tem passado?
— Bem, menina Clara, bem. E a tese, corre conforme os seus desejos?
— Vai indo, Sr. Groucho, menos mal. Os meus desejos talvez sejam excessivos relativamente às minhas capacidades.
— Não diria isso, menina Clara, olhe que aqui só tenho ouvido a seu respeito os mais rasgados elogios, e sempre com toda a elevação.
— Imagino, Sr. Groucho, imagino. Mas, por falar na tese, diga-me uma coisa, tem filhos, Sr. Groucho?
— Não, menina Clara, a vida não me deu essa oportunidade. Mas gosto muito de crianças, e até convivo com elas sempre que posso: tenho sobrinhos.
— Ah sim? Rapazes ou meninas? E como é que eles são?
— Uma menina e um rapaz. São crianças normais, menina Clara, não obstante...
— Não obstante? Não obstante o quê?
— Não obstante o modo como a minha irmã os educa, ou melhor dizendo, não educa. Ela tem umas ideias estranhas. Diz que a função dela, como mãe, é proteger e sobretudo observar.
— Hmmm, curioso...
— Oh sim, e desconfortável para os outros, se quer saber. A minha irmã sustenta que o que chamam educação das crianças visa apenas aniquilar-lhes a vontade própria. E que daí resulta o mais negro paradoxo da educação: as crianças são reprimidas, e os adultos não conseguem reprimi-las. Uns e outros malogrados, diz ela.
— Hum, sabe, Sr. Groucho, gostava de conhecer essa sua irmã.
— Quando quiser, menina Clara, quando quiser. Aliás, já lhe falei de si. Com toda a elevação, claro.
— Claro!