19 agosto 2005

Leituras estivais recomendadas por Groucho





























O artigo de Paulo Tunhas «Pensar Portugal Hoje», na Atlântico de Agosto, sobre o best seller de José Gil. Finalmente, alguém se assoma à linha da frente e diz, de forma incisiva e contudo sempre elegante, que o livro de José Gil é uma das mais fúteis contribuições recentes para a indústria da «identidade nacional».
Só um país no qual Eduardo Lourenço é muito mais conhecido e prestigiado por obras como O Labirinto da Saudade do que pelos seus reais grandes livros - Poesia e Metafísica ou Pessoa Revisitado -, é que podia entronizar como último avatar do ensaio identitário um livro como Portugal, Hoje. O Medo de Existir. Paulo Tunhas, mais conhecido pelo infeliz livro que co-produziu com Fernando Gil sobre o pós-11 de Setembro, assina na Atlântico um ensaio-recensão tão demolidor quanto justo sobre a arbitrariedade dos exemplos aduzidos por José Gil, a ligeireza insustentável no encadeamento de raciocínios, a facilidade especulativa, a reificação ontológica (o carácter «burgesso» dos portugueses) ou a bateria de conceitos vagos, fungíveis e desprovidos de real capacidade descritiva e explicativa, que no livro se sucedem, com caução de Deleuze & Co («não-inscrição», «não-acontecimento», «nevoeiro», «sombra branca», «atmosfera nevoenta», etc.), conceitos que quase sempre abafam inutilmente as intuições produtivas do autor sobre o funcionamento da esfera pública portuguesa.
É difícil ler o livro de José Gil, e mais ainda o ensaio de Paulo Tunhas, sem a constatação melancólica de que a indústria lusa da identidade resiste a tudo, em que pese aos esforços da sociologia, antropologia e história portuguesas mais recentes para carrear dados que ajudem a perceber que os supostos «traços ontológicos» diferenciadores dos portugueses são antes, e quase sempre, défices históricos, e a esse título corrigíveis. Como já tantos antes disseram, a nossa indústria identitária edificou-se sobre o desconhecimento real do país (ou melhor: dos muitos países que existem no país, quase sempre confundido ou com um romance de Eça ou com um café lisboeta), desconhecimento esse complementado e suplementado por abundantes «intuições» e «revelações» provindas de figuras tutelares da clerezia humanística.
Paulo Tunhas, a este propósito, destaca a falta de profissionalismo dos portugueses, que criaria, por arrasto, a ilusão de uma especificidade identitária. Por mim, recordaria uma frase do improvável Manoel de Oliveira, que em tempos sugeria que o nosso problema não é o de falta (ou excesso) de identidade, mas sim, mais prosaicamente, de «capacidade de gestão». É contudo sempre mais fácil reactivar a retórica nunca esgotada da Arte de Ser Português, da autoria, já agora, de uma outra figura chave da indústria identitária. Por outras palavras, é sempre mais fácil a conversa de café de portugueses entregues à má-língua. A diferença específica de Portugal, Hoje reside em que este português é filósofo, e daí o prestígio de que de súbito se revestiram conceitos (?) como «não-inscrição».
Tudo visto e revisto, Portugal, Hoje, no seu vezo ontologizante (e tão queirosianamente castigador, naquele regime em que se denuncia a enxurrada tendo o prévio cuidado de puxar as calças para cima) não é nem diagnóstico nem prognóstico. É simplesmente parte do problema que tenta descrever e explicar.