28 agosto 2005

Diário de uma intelectual enquanto jovem mãe (e ao invés)

21 de Julho

Estive há pouco a rever Lost in Translation em DVD. O Gustavo e a Mariana adormeceram cedo, e decidi aproveitar. Claro que houve uma interrupção a meio (só uma, vá lá…) por choro súbito da Maria. De lamentar, a interrupção da integridade da obra por intromissão da contingência? Ou terá a pausa, a quebra do fluxo pré-ordenado do filme, as suas virtualidades (as da distanciação, da questionação da temporalidade linear da obra)? Ninguém o diria da leitura de um romance, por exemplo, que é por definição interrompida e recorrente. Mas tudo parece ser diferente quando se trata de um filme, uma peça musical ou dramática. A questão das artes performativas, seguramente. Só que neste caso (como em tantos outros) a reprodução técnica, que me permite ver o filme em casa, altera – ou sabota? – os dados da questão. Antigamente, na ida ao cinema, o intervalo era uma imposição, por uma feliz articulação de questões técnicas (a limitada capacidade das máquinas de projecção e das bobines) e do incitamento ao consumo, aliás débil naquela altura. E gerações houve que se habituaram a discutir os filmes a partir de uma divisão heurística entre «a primeira parte» e «a segunda parte», quando, como nos lembrava o intelectual de serviço entre os amigos com que íamos ao cinema, os filmes não tinham «primeira parte» e «segunda parte»: eram uma coisa só, uma Obra integral. Agora, a mesma conjunção entre tecnologia de projecção e consumo impõe quase sempre o filme integral, em versão massacrante (chama-se «Dolby» à chinfrineira agressiva e brutal em que o espectáculo cinematográfico se tornou, como se ir ao cinema se tivesse transformado num equivalente de uma ida à discoteca) e mete-nos nas mãos umas mixórdias para aguentarmos, até mesmo fisicamente, o filme, e a agressão sonora, de rajada. O «intelectual de serviço» deve estar feliz, em nome da integridade da obra. Eu penso às vezes na minha integridade física e suspendo o juízo. Em todo o caso, em ambiente doméstico a Maria vai criando os intervalos que bem entende, marimbando-se para a «organicidade da obra», a durée, e todo o seu cortejo fenomenológico. Aprendi aliás ultimamente a ver os DVD’s (nos raros momentos em que o consigo fazer) em ambiente maternal: instalo o computador portátil, de momento o meu único computador, na cama, ponho o DVD e vou vendo enquanto os miúdos, e especialmente a Maria, dormem. Cinéma vérité, creio. Sabe-me bem, como só na infância e adolescência as matinés de sábado, que suponho já nem existirem.
Desta vez, talvez por causa da solidão amorosa, o impacto do filme concentrou-se na fabulosa sequência final. Ele segue no táxi, após se ter despedido dela. De súbito, vê-a de costas no meio da multidão. Manda parar o táxi, sai e vai até ela. Nesse momento, o filme joga com superior inteligência com a nossa memória cinéfila, tão admiravelmente explorada há uns anos por Nani Moretti, em Palombella Rossa, embora em contexto ideológico: a sequência também final do Doutor Jivago, de David Lean. Jivago sai do eléctrico e, combalido pelo coração em crise e pela vida que não houve com a amante, brevemente entrevista do eléctrico, tantos anos depois, corre pela multidão em busca dela. Quando, em Lost in Translation, ele se aproxima dela, no meio da multidão que caminha em Tóquio, fica-se intimamente convencido de que também aqui se trata de uma ilusão: não é ela, o passado é irremediável (e o mesmo vale para o futuro de que se desiste), a vida não recomeça. Mas é mesmo ela, isto não é uma tradução ao retardador do Doutor Jivago, ninguém é ainda amante de ninguém, tudo são só promessas, nada está perdido.
Depois ele diz-lhe aquelas palavras ao ouvido, e Sofia Coppola, num golpe de génio, deixa-nos suspensos do silêncio e do segredo. Sorriem ambos quando se despedem, ela visivelmente reconfortada e – poderei dizê-lo? – feliz. Que lhe terá ele dito? As hipóteses são várias, ainda que não ilimitadas. A primeira, e mais fácil (o filme não a merece): uma promessa de reencontro breve e amor eterno. Segunda hipótese: ele diz-lhe tudo aquilo que desejamos dizer a alguém com quem temos um caso. E, por isso, as nossas palavras dele variam com os anos e a vida. Talvez isso explique o facto de ambos parecerem felizes no final, de uma felicidade leve e descomprometida. Mas esta não é bem uma resposta à questão, pois não preenche o vazio da cena: limita-se a desvelar a sua estrutura lógica e fenomenológica, digamos. Terceira hipótese, que permite combinar as duas primeiras: ele diz-lhe que a vida ainda os há-de juntar e ela, sendo novinha e com tempo pela frente (o que já não é o caso dele), fica feliz com a «promessa». E ele fica feliz por a ter deixado feliz. Cínico? Desistente? Ninguém fica afinal com ninguém? Não sei. Ninguém sabe, nem mesmo ele (admitindo que as suas palavras tiveram sobretudo um intuito caritativo). Ele pode regressar a casa e, no momento em que franqueia a soleira da porta, perceber que o casamento acabou e que a vida dele recomeça agora com ela. Fica tudo em aberto. Como a vida.
Em que idioma se traduzem pois essas palavras que não ouvimos? No intraduzível idioma do amor? No da perda? No da melancolia? E não são todos o mesmo?
A Maria berra. Está na hora da papa… E agora também a Mariana acordou com o choro da mana. Já vou, bichanas…