05 agosto 2005

Desaforos



/…/ daí que o desaforo possa ser arma de combate: se todo o homem pode ser um ponto de resistência, como já ouvi dizer, porque eliminar a resistência pelo desaforo, se o desaforo é humano, genuinamente humano? Dou o exemplo dos artistas, no caso, dum artista soviético. Passou-se o episódio nos primeiros anos do regime soviético, mais ou menos entre 1926 e 1934 (impossível maior precisão, porque o episódio foi eliminado dos registos). O Comité Central do PCUS resolveu promover um evento (na altura não se dizia assim) que assinalasse o tempo que Lenine permaneceu em Zurique. O motivo principal da comemoração seria um quadro, um grande quadro a óleo, cujo título deveria ser, naturalmente, «Lenine em Zurique». O quadro foi encomendado a um jovem pintor de Leninegrado. A velha guarda do CC reagiu com cepticismo: o pintor era judeu. Foram sossegados pelos camaradas mais novos, com argumentos que não vêm ao caso.
O prazo era longo, um ano, e durante esses doze meses o jovem pintor trabalhou em segredo. Impôs, e conseguiu, que ninguém entrasse no estúdio nem visse o quadro antes da cerimónia final. E lá chegou o dia marcado, o quadro pendurado no local escolhido do Kremlin, um largo pano vermelho cobrindo-o completamente. Quando ficou enfim exposto, todos viram horrorizados a imagem nele representada: Krupskaya, a mulher de Lenine (foto acima), e Trostsky, juntos na cama, não havendo entre eles senão o pince-nez de Trostsky. Grande algazarra, como se compreende, e alguém do CC que grita: «— Onde está Lenine?»
O pintor avança e esclarece: «— Neste quadro, Lenine está em Zurique.»

F. A. Leite
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»