21 agosto 2005

Clube Casmurro TV (Parte I)

GROUCHO: Boa noite, senhoras telespectadoras e senhores telespectadores. Aproveitando a nova «filosofia» do Canal 2, aberto à sociedade civil, iniciamos hoje as emissões televisivas do Clube Casmurro TV com duas pessoas muito reputadas nas suas áreas profissionais respectivas: Archie Bunker, exemplar chefe de família, e Paul de Man, professor de literatura comparada na Universidade de Yale. Muito boa noite e obrigado por terem vindo a este programa.
ARCHIE BUNKER: O prazer é todo meu, Groucho.
PAUL de MAN: De nada.
GROUCHO: A primeira pergunta é para si, Prof. De Man: Costuma ver Tudo em Família?
P. de MAN: É aquilo com que, desde há anos, alterno as minhas leituras de Nietzsche e Rousseau. Chega, como resposta?
GROUCHO: E sobra. Que me diz a isto, Archie?
A. BUNKER: Não estou assim muito surpreendido pois ainda há tempos o Prof. me enviou um ensaio que vai publicar, numa daquelas revistas finas da universidade, sobre mim. «Semiótica e Retórica», não é? Enfim, na verdade não é só sobre mim, mas sem a minha presença ali até se torna um pouco maçudo – desculpe lá, Prof., mas sabe que eu tenho o coração ao pé da boca…
P. de MAN: Fascinante metáfora…
A. BUNKER: … e digo o que tenho a dizer. Aqui que ninguém nos ouve, Prof., a Edith é que não achou grande piada ao que diz dela. Mas depois eu fiz-lhe ver que a sua expressão – «uma leitora de uma sublime simplicidade», se bem me lembro - era elogiosa (afinal, até diz que ela é sublime – um exagerozito, Prof….) e ela disse mesmo que o Prof. era um amor. Eu tomava era uma Heineken, ó Groucho…
GROUCHO: Mas conhece a obra do Prof. De Man, Archie?
A. BUNKER: Bom, ao que sei ele só tem um livrito publicado, não é? Esperto mas sorna, exactamente como eu, hein?! [Archie dá uma cotovelada cúmplice em De Man] Já li uns bocados, sobretudo pela grande curiosidade que o diabo do título me causou: O Ponto de Vista da Cegueira! Ó Prof., desculpe lá mas ainda me há-de dizer como é que um cego vê! Eh, eh! Estes intelectuais são danados para a brincadeira! [Nova cotovelada] Sabe que quando vi o título até pensei que seria um livro sobre o embuste do comunismo, porque é mesmo isso: uma coisa de ceguetas, que é o que esses gajos são (o Prof. também não pode com eles, pois não?). Depois é que vi que era sobre poesia… Mas estava enganado, porque também não era sobre isso mas sobre os ceguetas dos críticos. Fiquei convencido de que é uma gente bué da bronca, sempre a enganar-se, como o Prof. tão bem mostra. Por alguma coisa eu não perco tempo com eles. Até porque nunca vi nenhum crítico escrever nada de interessante sobre os meus autores preferidos, o Ludlum e o Spillane. Nem vejo aliás o que haja a dizer. Roubaste? Violaste? Mataste? Levas já um balázio nos cornos…
GROUCHO: Mas o Prof. De Man fala de que aspecto da série, nesse seu ensaio?
P. de MAN: Bem…
A. BUNKER: Você não vai acreditar, Groucho! Com tantos temas importantes que se debatem na série – a vida de família, o papel da mulher como pilar dessa nobre instituição, os valores que fizeram esta grande nação, os EUA – não é que aqui o Prof. escolheu falar dos atacadores dos meus sapatos de bowling?
GROUCHO: Dos seus atacadores? É verdade, Prof.?
P. de MAN: Sim e não. Os atacadores são apenas o pretexto para a questão mais vasta, e complicada, que nesse episódio eu exploro: o da aparente mas ilusória simbiose entre uma estrutura gramatical e uma estrutura retórica.
GROUCHO: Importa-se de explicar?
P. de MAN: Com certeza. Archie está para sair, para ir jogar bowling, e Edith pergunta-lhe se ele quer os atacadores atados em cima ou por baixo dos sapatos de bowling, ao que ele responde com uma pergunta: «What’s the difference?» Edith, que na minha descrição é, como o Archie já fez o favor de lembrar, uma leitora de uma sublime singeleza, responde a essa pergunta explicando pacientemente a diferença entre as duas possibilidades de atar os atacadores. Só que aí o Archie perde a paciência (ele é escasso em paciência, como sabe…) e responde quase aos berros com a mesma pergunta: «What’s the difference?», que, percebemos então, é uma pergunta retórica que significa mais ou menos «Quero lá saber da diferença!» O que eu tento demonstrar é que o mesmo padrão gramatical gera dois sentidos conflituantes: o sentido literal pergunta por um conceito (diferença) cuja existência é negada pelo sentido figurado. A retórica, se me permite concluir, suspende a lógica e abre possibilidades infindas de aberração referencial. E isto é para mim o que define a literatura.
GROUCHO: Food for thought, Prof. Vamos interromper aqui o programa para uma indispensável pausa publicitária. Regressaremos dentro de minutos.