Teleológico, 2
Reatando, mas sereno.
— Já almoçou, senhor?
— Vagamente, também pouco como. A boa notícia é que falei agora mesmo com o meu amigo Silvestre…
— Não o vi hoje, senhor.
— Não está cá, foi à Covilhã. Telefonei. Esclareceu tudo, parece-me. Disse-me ele que aflorou consigo, ontem à noite, certos pormenores que discutimos numa conversa há uns tempos, o clube mal tinha aberto. Falámos duma visão teleológica da história do romance português, subterrânea, persistente, e a propósito da rivalidade entre camilianos e queirosianos.
— Ainda há que dizer sobre isso? Andava eu no liceu, e já os professores desqualificavam o assunto como coisa sem sentido.
— Nem tanto, Groucho. Alias, essa desqualificação sumária e trivial é responsável, junto com outros factores, é claro, pelo escamoteando da visão teleológica.
— Mas em que consiste, afinal? Ainda não percebi.
— Mais ou menos isto: o romance português balbuciou infantilmente com os primeiros românticos, embora já propenso à história pátria; disparatou juvenilmente com Camilo, desordenado, indisciplinado e muito primitivo; atingiu enfim a forma madura, a queirosiana, em direcção à finalidade última — representar Portugal. Em resultado, não devia fazer sentido valorizar ou cultivar a forma imatura, quando a madureza foi atingida com tanto brilho e firmeza. Esta ideia formou-se na década de 80 do século XIX, e teve muitas consequências molestas.
— Que tem isso que ver com a presuntiva desgraça do romance de hoje?
— Tem que a ficção camiliana perdeu, durante todo o século XX, a oportunidade de se constituir escola da arte do romance. Irreversivelmente. Os alunos frequentaram quase todos a escola queirosiana, afinal uma restrição da arte do romance imposta pela amálgama ideológica chamada «ideia nova».
— Depreendo mal, ou está a dizer-me que o romance queirosiano não é um progresso relativamente ao camiliano?
— Estou a dizer-lhe o mesmo que lhe disse ontem o meu amigo Silvestre: que a ideia de progresso à imagem do organismo animal, como se se formasse guiado por uma finalidade nele inscrita, não tem valor, nem pertinência descritiva. Somos antimodernos, já lhe disse, mas…
— Em sentido moderno, lembro-me bem: escusado remontar a dias pretéritos. Quem sabe um destes dias o senhor terá a amabilidade de me explicar isso.
— Um destes dias, diz bem.
— Já almoçou, senhor?
— Vagamente, também pouco como. A boa notícia é que falei agora mesmo com o meu amigo Silvestre…
— Não o vi hoje, senhor.
— Não está cá, foi à Covilhã. Telefonei. Esclareceu tudo, parece-me. Disse-me ele que aflorou consigo, ontem à noite, certos pormenores que discutimos numa conversa há uns tempos, o clube mal tinha aberto. Falámos duma visão teleológica da história do romance português, subterrânea, persistente, e a propósito da rivalidade entre camilianos e queirosianos.
— Ainda há que dizer sobre isso? Andava eu no liceu, e já os professores desqualificavam o assunto como coisa sem sentido.
— Nem tanto, Groucho. Alias, essa desqualificação sumária e trivial é responsável, junto com outros factores, é claro, pelo escamoteando da visão teleológica.
— Mas em que consiste, afinal? Ainda não percebi.
— Mais ou menos isto: o romance português balbuciou infantilmente com os primeiros românticos, embora já propenso à história pátria; disparatou juvenilmente com Camilo, desordenado, indisciplinado e muito primitivo; atingiu enfim a forma madura, a queirosiana, em direcção à finalidade última — representar Portugal. Em resultado, não devia fazer sentido valorizar ou cultivar a forma imatura, quando a madureza foi atingida com tanto brilho e firmeza. Esta ideia formou-se na década de 80 do século XIX, e teve muitas consequências molestas.
— Que tem isso que ver com a presuntiva desgraça do romance de hoje?
— Tem que a ficção camiliana perdeu, durante todo o século XX, a oportunidade de se constituir escola da arte do romance. Irreversivelmente. Os alunos frequentaram quase todos a escola queirosiana, afinal uma restrição da arte do romance imposta pela amálgama ideológica chamada «ideia nova».
— Depreendo mal, ou está a dizer-me que o romance queirosiano não é um progresso relativamente ao camiliano?
— Estou a dizer-lhe o mesmo que lhe disse ontem o meu amigo Silvestre: que a ideia de progresso à imagem do organismo animal, como se se formasse guiado por uma finalidade nele inscrita, não tem valor, nem pertinência descritiva. Somos antimodernos, já lhe disse, mas…
— Em sentido moderno, lembro-me bem: escusado remontar a dias pretéritos. Quem sabe um destes dias o senhor terá a amabilidade de me explicar isso.
— Um destes dias, diz bem.
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