16 julho 2005

Teleológico, 1


— Com sua licença…
— Diga, Groucho. É impressão minha ou alguma coisa o preocupa? Noto certa sombra...
— Com efeito. Preocupar, bom... preocupar talvez seja excessivo. Vinha pedir-lhe que me explicasse uma coisa.
— Se eu pudesse, explicava-lhe tudo, desde a marcha inexorável do progresso à rotação dos caprichos da política portuguesa… Mas espere aí… Não foi você mesmo quem disse, e em público, que tudo é uma seca, se didáctico ou didacticamente intentado? Mais ou menos isto, ou engano-me?
— Não me lembre esse episódio infeliz outra vez, senhor. Já chega de ligações aos dias pretéritos, se me releva o atrevimento. É que tive ontem uma conversa com o Sr. Silvestre em que ele o mencionou a propósito de Camilo.
— Gentileza dele. E dizia então que…
— Que para entendermos o desgraçado romance português hoje se devia ler o Camilo. Não acabo de entender o que queria o Sr. Silvestre com isso. Derivou para outro assunto, mas ainda referiu qualquer coisa sobre o anacrónico não ser o ultrapassado…
— Acho que estou a ver. O Sr. Silvestre, que se baldou ao nosso jantar-palestra, teve tempo para entreter consigo palestras amenas em volta da teleologia…
— Perdão, senhor, outra vez essa palavra? Foi a primeira coisa que me disse quando para aqui vim, que…
— ... a palavra «teleológico» não é tão usada quanto merecia. Lembro. Mas então não era para parar com ligações aos dias pretéritos…?
— Com efeito. O senhor vive no passado, e o vício pega-se. Isto chega a parecer um curso, senhor. Demasiado didáctico. Já nem sei se me interessa o Camilo teleológico.
— Deixemos para depois, então. Até me dá jeito. Depois de almoço, Groucho.
— Nunca almoço, senhor.