05 julho 2005

Sombras para o jantar

- Leu o último número da Atlântico, Groucho?
- Que pergunta, senhor, sendo a directora a Helena Matos…
- Pois, esquecia essa sua devoção. Depreendo então que leu o ensaio de Rui Ramos sobre o início e o fim do cavaquismo?
- Claro. E não me vai agora dizer que não se trata de um notável historiador?
- Só lhe digo isto, como elogio: nem parece discípulo de Filomena Mónica! Mas reparou decerto na tese central dele: Cavaco governou (o país e o partido) em estilo presidencial, dirigindo-se directamente aos eleitores, dispensando a mediação do «aparelho partidário». Um tanto como «O Primeiro-Ministro de todos os portugueses». Ramos chega mesmo a dizer, no que é um manifesto excesso de entusiasmo analítico, que «o PSD era uma parte subordinada, sem qualquer papel na condução política do governo» - embora ao mesmo tempo vá dizendo que o tal PSD que não riscava nada na condução política, colonizava a máquina do Estado. Enfim, opções…
- Sim, mas Cavaco decerto não tinha nada a ver com isso, senhor. Eu, pelo menos, não acredito nisso!
- Eu também não, Groucho, de modo algum! O ponto é que, e ao contrário do que sempre nos pareceu – que Cavaco é um executivo e não uma personagem disposta a confinar-se a um papel simbólico: vejam-se os artigos de jornal com que, nos últimos anos, periodicamente manda abaixo algo ou alguém – Cavaco, pela pena de Rui Ramos, torna-se um presidente antes do tempo. Só falta mesmo entronizá-lo. Ou melhor, plebiscitá-lo, modalidade eleitoral que sempre foi a sua preferida, diga-se. Porque, quanto às outras, a sua opinião é a que tem sobre os referendos: sabe-se como começam, não se sabe como acabam…
- A democracia tem, na verdade, esse inconveniente, entre muitos outros.
- Sejamos justos: Ramos lá vai dizendo que Cavaco foi mesmo o criador do monstro assistencial do Estado; que sempre quis uma sociedade moderna mas tutelada, etc.
- Um anti-socrático, pelos vistos…
- Nem mais. Mas o clou do texto, para mim, é a revelação sobre o que se passou no dia imediatamente a seguir à tomada de posse de Guterres. De acordo com Ramos, nesse dia «foram arrancadas as placas que reservavam um lugar de estacionamento a Cavaco em frente de casa. Cavaco percebeu que o queriam fazer desaparecer».
- Caramba! Há-de convir que foi um gesto mesquinho, de baixa política.
- A mim, o que me impressiona é a eficiência do guterrismo na matéria, muito ao arrepio do que sucedeu depois em quase tudo! Logo no dia seguinte?! Mas sabe o que esse gesto me faz lembrar?
- Diga…
- Aquilo que Cavaco fez a Freitas do Amaral logo após a derrota tangencial deste na corrida presidencial de 1985. Lembra-se? Freitas ficou carregado de dívidas da campanha e andou anos a pagá-las, pois Cavaco decidiu que nada tinha a ver com o caso. O que valeu a Freitas é que é professor de Direito e, ao que consta, fartou-se de fazer pareceres. Imagine que era professor de Letras ou Matemática?! Tinha ido à falência, sem remissão. Ora, o que chamar a este abandono de Freitas por Cavaco, senão uma tentativa de o fazer desaparecer?
- A política, decididamente, não é um convite para jantar…
- A citação está ligeiramente errada, como sabe. Até porque a política, em grande medida, resume-se a conseguir ser convidado para jantar... O que me parece é que estes casos mostram que a política, antes de ser uma questão prandial, é a arte de gerir o desaparecimento, em sentido activo ou passivo.
- Matar ou ser morto?
- Esse seu vezo shakespeareano… E se tomássemos antes um chá, Groucho?