18 julho 2005

O tabefe

— Bom dia, Groucho. Novidades?
— A única novidade digna de nota, senhor, é que a Inês Pedrosa levou um tabefe…
— A Inês Pedrosa?! Onde? Quem lho deu?
— O pai, senhor. Na montanha russa, ela era miúda e…
— Ah, era miúda, estava a ver…
— Estava a ver o quê? Pensava que tinha sido ontem? Francamente, senhor, se tivesse sido agora mesmo, acho que nem me indignava como me indignei ao ler aquilo, e tão-pouco me compadecia…
— Essa agora! Um tabefe num adulto é menos digno de compaixão do que numa criança?
— Não me perverta as palavras, senhor. Um tabefe numa criança é sempre motivo de forte indignação. Sempre.
— Está bem, adiante. Conte o caso, vá, ainda não percebi.
— Ela própria o contou no Expresso de sábado passado. Foi com o pai andar na montanha russa, gritou na primeira volta e levou um tabefe.
— E percebe-se porquê?
— O pai teria achado que a pequena o envergonhou. O que me surpreendeu foi que ela o contasse en passant, aliás a propósito da extinção do Ballet Gulbenkian, sem um parêntesis para se insurgir, sem uma digressão para repudiar o acto nefando. Um espírito malévolo havia de presumir que ela até acha, ainda hoje, que mereceu o tabefe. Ou que é normal na vida ou na condição duma criança.
— Não é preciso ser malévolo, Groucho. A coisa explica-se com a própria explicação.
— Como assim?
— Então? Não me disse que o pai lhe bateu porque achou que ela o envergonhou? Há tabefes que duram para sempre. Como diria um retórico, são metonímias do poder do pai, que é suposto durar para sempre.
— Receio não ter entendido ainda.
— Deixe-me contar-lhe uma história. Já leu o livro que lhe dei há dias, as Memórias Póstumas de Brás Cubas?
— Ah… ainda não tive oportunidade, senhor.
— Então, quando o ler, dê atenção a um episódio curioso. Na infância, esse Brás Cubas gostava de cavalgar um escravo, Prudêncio, moleque como ele, e até o vergastava nos flancos como se fosse um cavalo. Já adulto, vem a encontrá-lo na rua, liberto há muitos anos, vergastando violentamente o seu próprio escravo. Brás Cubas intercede pelo desgraçado, pede a Prudêncio que lhe não bata, e ele obedece. Geralmente, comenta-se o episódio concluindo que a violência gera violência, que o escravo se desforra noutro escravo, e por aí fora. O que está certo, claro. Mas o ponto decisivo, que aliás assegura a reprodução da violência, é outro: é que Prudêncio, apesar de liberto, livre de fazer o que quiser, obedece ao antigo dono, em vez de o mandar meter-se na sua vida. Continua escravo, esmagado pela sujeição. O facto de obedecer na presença do antigo senhor, actual e efectiva, é acessório: essa presença é permanente e eficaz. Não foi você mesmo que disse na televisão que acredita em fantasmas?