O livro por vir de Groucho
- Ó Groucho!... Groucho!
- Estou com pressa, senhor, adeus, adeus. [Groucho afasta-se, virando costas e despedindo-se com um gesto seco]
- Mas onde vai você assim a correr, homem? Vai apanhar algum comboio? Dê-me só dois minutos. Serei breve, prometo.
- O primeiro português a dizer isso foi o Vasco da Gama (Os Lusíadas, III, 4) e a seguir o rei de Melinde teve de gramar 3 cantos só com História de Portugal…
- Você está rangente, hoje, gaita!
- Tenho abundantes razões para isso, como acaba de saber. Mas enfim, vou dar-lhe os 2 minutos. Já estão a contar.
- Bolas, não precisa de me tratar como se eu fosse um seu subordinado a quem concede uma mercê! Chega a ser insultuoso! Enfim, é isto: acho que sei qual é a sua obra secreta. A tal que alegadamente lhe foi furtada.
- «Alegadamente»? Olhe que isto não é uma pós-graduação em epistemologia pós-moderna! É a verdade nua e crua!
- Dizer que a verdade é nua e crua (eu preferia-a mal passada, mas seja…) é o mesmo que vesti-la com uma boa dose de tropos…
- [Furioso] O senhor está a insinuar alguma coisa? Está?!
- Hã?... Que bicho o mordeu? Um comentário chico-esperto apenas …
- Bom, desculpe. Estou nervoso, como vê. Adiante, adiante.
- Aqui vai, então: o livro que desapareceu – perdão, que lhe furtaram – é uma vasta suma intitulada «Máximas, aforismos e apotegmas de Groucho». Parece-me mesmo a coisa que o seu lábio fulgurante anda a congeminar na sombra já há um tempo.
- Mais de 500 pp. de apotegmas? O senhor não acha que são apotegmas a mais? Nem pense nisso.
- Caramba, estava inteiramente certo disso… Há tempos já que desconfiava que o meu amigo andava a premeditar-se autor e a hipótese mais concordante com o seu perfil pareceu-me ser essa.
- Lamento desapontá-lo.
- Mas olhe. Tenho aqui uma lista de títulos alternativos que andei a magicar para o seu opus. Eu leio-lhos e o Groucho só reage àquele que for mesmo o verdadeiro, OK?
- Os 2 minutos estão a acabar… Enfim, mais um caso de sobreexploração do meu tempo e do meu trabalho, neste clube.
- Aqui vai, então. Título alternativo nº 1: «Do pretensiosismo intelectual. Como lidar com ele em 10 lições».
- Dava-me um jeitaço neste clube! Acho que o vou é incluir no rol das minhas obras à venir… E obrigado pela sugestão.
- Porra, que o gajo até sabe francês, coisa rara, hoje!... Ele são surpresas umas atrás das outras com este homem… Bom, título 2: «Da inutilidade da política cultural. Um ensaio neoliberal».
- Mas acha-me com cara de António Barreto? Francamente. Venha outro…
- Cá vai: «Do casamento cristão à poligamia. Por uma nova ordem conjugal».
- [Fúria contida em silêncio]
- Pronto, não se zangue. Era só uma hipótese. Não ia adivinhar que o seu desinteresse por estas matérias fosse tão absoluto. Título 4: «O corpo desdobrado. O impacto de Brecht no cinema porno».
- O senhor tá a mangar comigo! Só pode!
- Essa agora! Pareceu-me apanhá-lo há dias com o DVD de Por trás da porta verde, o clássico do porno.
- Peço desculpa mas era O quarto verde, do Truffaut! Luto, necrofilia, etc. Nada de porno, pelo amor de Deus! E ademais, que diabo tem a ver esse filme da porta verde com o título sugerido?
- O que tem a ver? É que aquilo é puro Brecht, meu caro Groucho, puro Brecht!
- Acabou o tempo. Até mais ver, Sr. Silvestre.
- Só mais um, Groucho, ande lá.
- Vai ter mesmo de andar, se quiser dizer-me o título, pois vou para a paragem do autocarro.
- Como queira. Esta é que vai ser na mouche. Ande mais devagar, caraças… Oiça com atenção: «O livro por vir». Diga lá se não acertei?
- Mas esse já existe… É do Blanchot, um dos meus heróis. E depois, todos os livros são por vir, mesmo os que já vieram.
- Justamente, Groucho, justamente. Vê como afinal acertei? Sou mesmo o maior, não sou?
<< Home