01 julho 2005

O examinador inexorável*

— Quais as figuras activas em «esticar o pernil» e «ter o coração ao pé da boca»?
— Hum, a primeira é fácil. O porco estica o pernil, que é a parte estreita da perna, quando leva a facada, coitado. Esticar o pernil, em consequência, é morrer: primeiro por sinédoque (a parte pelo todo, o pernil pela perna), depois por metonímia. [Atenção: não é «morrer por metonímia», é «morrer, por metonímia». A causa é designada pela consequência. Esticar o pernil é consequência da morte… ou da facada? Ir ver.] Isto no que toca ao porco. Dizer de alguém que esticou o pernil para dizer que morreu resulta então uma… metáfora? muito desagradável, valha-nos Deus. Parece-me bem mais elegante dizer que foi..
— Chega! o que lhe parece não interessa nada. E na outra frase?
— Menos claro. Mas consigo, espere, que consigo. «Ter o coração ao pé da boca» significa dizer tudo, não estar com rodeios, falar com franqueza, sem rebuço, etc. Tudo o quê? Tudo o que se sente. Ah! como te odeio! Como abomino esse livro! Adorei o que fizeste! e por aí fora. Então, temos uma primeira metáfora, que situa no coração o domicílio dos sentimentos; muito antiga, tradicional, quase congelada: ninguém dá por ela. Aperta-se-me o coração, partes-me o coração, coração flagelado, um ferro a fistular-me o coração, etc. Chamados por qualquer acontecimento, palavra, gesto, em suma, estímulo exterior, os sentimentos saem de casa em direcção ao mundo. Fisiologicamente, não há caminho, nenhum trânsito exequível. Figuradamente, percorrem algum espaço, até chegarem à boca, que os exprime, quero dizer, que os solta. (Não se sabe se depois voltam a casa.) Quem tem o coração ao pé da boca, em suma, beneficia (eu cá sou muito franca…) de um trânsito curtíssimo: eles, os sentimentos, quero dizer, saem de casa e estão logo na rua. Portanto, outra metáfora, designando como trânsito, curto e sem obstáculos, do domicílio à boca, a expressão linguística de sentimentos. Era isto?
— Falta a boca, não disse nada da boca. Lamento, mas vai ter que cá voltar para o ano.

*De Caderninhos de Retórica do Groucho, fl. 236a-b.