17 julho 2005

O culto moderno dos monumentos

- O senhor viu, nos jornais, a notícia sobre a estátua de Manuel Alegre a instalar em Coimbra?
- Vi, sim.
- De um Francisco Simões, não é?
- Sim, se não erro um escultor especialista em raparigas nuas e em poetas. O JL gosta muito dele. Creio que é dele o projecto do Parque dos Poetas, em Oeiras, aonde queria incluir mesmo poetas que a isso se recusavam, casos de Cesariny e Herberto Helder. O argumento era o de que a obra deles era já «da colectividade». Pelos vistos, não apenas a obra mas também o corpo. Nem sei em que ponto está tudo isso.
- É esse mesmo. Os jornais dizem que a estátua será em bronze e terá 2,80 de altura. Isto é que me surpreendeu, confesso. O poeta é assim tão alto?
- Ó Groucho, essa agora surpreende-me a mim, vinda de um mestre em retórica… A altura da estátua é um tropo: supõe uma relação de analogia ou homologia com a entidade retratada na obra. Sinceramente…
- A altura é então simbólica?...
- Exacto.
- Ainda assim, 2,80… São quase 3 metros de simbolização... Já agora, aonde sugere o senhor que a estátua seja colocada?
- Ora bem, vejamos. Ao que parece, o poeta aparece envolto na capa dos estudantes, a qual, segundo o Expresso, «representa também uma bandeira da Liberdade». Não percebo bem como, mas a estatuária pública portuguesa opera milagres em questões de simbolização. Enfim, depois verá-se, como dizia o outro.
- Mas o local, senhor?
- Já lá vamos, calma. Tendo em conta a história do poeta, a capa dos estudantes e a própria altura da estátua, parece-me óbvio que deveria ficar situada na universidade. Não vejo lugar mais digno na cidade e que ofereça um mais imediato, e correcto, contexto histórico à personalidade representada.
- Também foi o que me ocorreu. Mas em que local da universidade, senhor?
- Também só vejo um, tendo em conta o perfil da pessoa em causa, simultaneamente poeta e figura pública de renome.
- Desembuche, caramba…
- Atão, não é óbvio? Ao lado do D. Dinis, Groucho.
- Mas como é que isso não me ocorreu? É perfeito, e duplamente simbólico: D. Dinis, também ele poeta e político. Duas figuras máximas do cruzamento da cidadania com a palavra poética. E aliás, Manuel Alegre tem poemas sobre D. Dinis.
- Nem mais. Até se poderia encenar um diálogo em verso entre os dois.
- Será uma opção seguramente consensual, senhor. Até porque vai valorizar muito a cidade.
- E a universidade, Groucho, não esqueça a universidade.
- Eu pensava mais no turismo cultural…
- Não esqueça o turismo político…
- Se calhar vai ser preciso criar uma nova categoria: o turismo político-cultural.
- É urgente. E olhe, mais uma vez Coimbra dará uma lição de pioneirismo ao país!
- O senhor permite-me que escreva um artigo para o Diário de Coimbra, sugerindo essa localização e as suas vantagens em todas as áreas?
- Então não? E olhe, até lhe sugiro um título clássico para o artigo: «O culto moderno dos monumentos».
- Lindo, senhor. Vou já para o computador. Pode ser que ainda saia na edição de amanhã…