21 julho 2005

O Blindfold Test do Groucho

- Continuo na minha, Groucho: não me parece que seja a pessoa indicada para responder a este teste.
- Mas, Sr. Quintais, como não? Então se o senhor, sobre ser antropólogo, e dos mais distintos da constelação pós-moderna, ainda é poeta, e reconhecido! Olhe que eu leio o Pedro Mexia, e o que ele diz dos seus livros não há muito quem diga sequer da própria mãe!
- Lá vamos nós de novo chover no molhado… A questão não é essa, como já lhe disse. É que o regime de leituras de poetas e críticos (ou especialistas, ou universitários, ou como lhes queira chamar) é diverso: serve propósitos diversos, parte de concepções diferentes de património literário, não se reconhece num mesmo ideal de exaustão do objecto, etc.
- Confesso que continuo sem perceber.
- Ó homem, não é assim tão difícil de perceber! Um «especialista» em poesia portuguesa moderna, por exemplo, para deveras o ser tem de ler tudo ou quase: o relevante e o irrelevante, o decisivo e o anedótico, etc. E tem de estabelecer filiações, derivações, dívidas contraídas, pagas ou não, legados, o diabo. Ou seja, para ser especialista no período moderno tem de conhecer a poesia não-moderna e pré-moderna, etc. Diversamente, enquanto poeta, e não obstando à necessidade de conhecer a maior parte da poesia portuguesa e em português, já que é nessa língua que escrevo, não me sinto na obrigação de ler tudo nem sequer um arremedo mais ou menos pálido desse todo. Leio, sim, aquilo em que me reconheço e que me constitui – embora, também por isso e para isso, me sinta na obrigação de conhecer aquilo que recuso -, numa lógica muito mais «egoísta» ou «alimentar», se quiser. E depois, para dizer a verdade, a mim interessa-me tanto Pessoa como Wallace Stevens, e interessam-me tanto Sena, Ruy Belo ou Nuno Júdice como Weldon Kees ou Celan ou Larkin ou Drummond. Percebe agora o que quero dizer?
- Por outras palavras, um pouquinho mais chãs, o senhor tem medo de não reconhecer o poema… Mas olhe que os distintos especialistas antes submetidos ao teste também falharam, apesar de venerarem o «ideal de exaustão do objecto».
- Qual medo qual carapuça! Mas isso é coisa que aflija alguém? Só os beatos da poesia é que acham que a «música do verso» é tão inconfundível como a assinatura individual! Só os beatos da poesia é que acham que em todos os poemas mora um vestígio do sagrado oráculo… Treta, meu caro: a maior parte dos poemas são Lego bem ou mal feito. E depois, não reconhecer o autor de um poema pouco tem a ver com a verdadeira dedicação à poesia, a qual pode exigir, para a sua persistência, uma mera mão-cheia de poemas. Antes isso que aquelas antologias de 1000 páginas, cheias de poemas que nunca ninguém lerá, até porque 1000 páginas de poemas não é poesia: é massacre! Mas enfim, se quer mesmo submeter-me ao teste, vamos lá a andar com isso, porque daqui a bocado tenho de ir correr.
- Óptimo, Sr. Quintais, óptimo. Sente-se então no sofá destinado à prova, se faz favor. Ora aqui tem o poema. Faça o obséquio de ler.

AS ESTÁTUAS

Meunier ou Rodin… ‘Sculpir, que belo!
Roubar o duro mármore às montanhas
E zás… à voz febril do camartelo
Brota-lhe a vida eterna das entranhas!...

Também um Verbo escultural anelo;
Quero às ideias dar, as mais estranhas,
Aquele estilo bárbaro e singelo
E transformar em deuses, brutas penhas.

Poeta, adoro as sóbrias esculturas;
Se encarno o pensamento em forma viva,
Talho as palavras como pedras duras;

Quebro, amacio, alteio, ali rebato-as,
Até lhes dar uma nudez altiva
- Que os grandes versos são como as estátuas.


- Pois, era o que eu receava. Nunca li tal coisa e nem faço ideia de quem seja o autor. Eu bem lhe dizia que não sou a pessoa mais indicada para isto. Mas se a questão é jogar às apostas, eu diria que o tom (melhor: o tonus) do poema me faz lembrar o Torga: o gesto órfico, o heroísmo da criação, o correlato monumental da mesma, a escultura como obra e matéria roubada à mãe-terra com a qual, de uma forma ou outra, está condenada a voltar a contactar, os versos como estátuas. Confesso que estou nos antípodas disto, pois não vejo como a linguagem pode ser coisa monumental: é antes coisa evanescente, escassamente fenomenal, nuvem que foge e se esfarrapa… Mas pronto, aposto no Torga – apesar de o soneto não lhe ser uma forma muito cara, coisa que aliás nos aproxima, diga-se…
- Lamento, mas não acertou.
- Não me surpreende, como lhe disse antes. Poucos são os poemas que sei de cor e tendo mesmo a ver a poesia como uma espécie de vozearia surda, da qual nos chegam apenas uns versos soltos, palavras encadeadas e soluçantes, magias breves. Poemas inteiros na minha cabeça, com franqueza, é coisa que nunca houve. Nem os meus, que os esqueço logo que os escrevo. Mas, voltando à estátua fria (gostou desta?...), continua a parecer-me coisa de presencistas. Pelo tema, até podia ser levado a pensar no Sena das Metamorfoses, mas o poema é de alguém uma geração anterior ao Sena (pelo menos). «Verbo» com maiúscula, o próprio verso «Também um Verbo escultural anelo», que não o estou a ver a escrever, o défice de reflexão metafísica («meditações», como ele dizia) transformado em «poética da pedra». Ná!, do Sena é que não é. Mas poderia ser do Régio, não? Ele sonetava furiosamente e gostava de produzir poéticas. É verdade que era mais dado ao desenho, da sua própria lavra. Mas também coleccionava escultura sacra, por exemplo. Enfim, vou no Régio.
- Errou de novo, senhor.
- É mais do que compreensível. Continua a parecer-me que deveria ser um presencista. Ou um neo-realista? O trabalho da pedra como metáfora do operariado, a vanguarda da História. Mas não estou a ver quem. O Joaquim Namorado gostava mais de fábricas à Álvaro de Campos, o Cochofel era só bucolismo, o Mário Dionísio? Creio que era também mais dado à pintura. Um neo-realista mais tardio? O Alegre, talvez? Gosta de estátuas, ao que parece, embora sobretudo das dele mesmo… Será do Alegre?
- Longe disso, senhor.
- Ná, não vou lá. É melhor revelar já o segredo para não perdermos mais tempo.
- É do Jaime Cortesão. Publicado na Águia em 1911.
- Do Jaime Cortesão? A Águia? Ó homem, mas o senhor tem cada ideia! Isso é coisa para paleontólogos.
- Mas é um contemporâneo do Pessoa, Sr. Quintais!
- Ora, ora, nunca ouviu falar na não-contemporaneidade dos contemporâneos? O senhor acha-se meu contemporâneo, desde logo com essa profissão anacrónica? E acha que eu sou contemporâneo da Filomena Mónica? Ou dos antropólogos de Rio de Onor? Ou, para regressar à poesia, do Couto Viana? Ou do Graça Moura? Ou do Joaquim Manuel Magalhães? Lá porque o Pessoa publicou uns textos falsamente críticos na Águia, acha que ele era contemporâneo do Pascoaes? Se bem que esse, diabos me levem se eu percebo de quem é que ele era contemporâneo. Nem dele mesmo, suponho. O Cesariny é que gosta de se ver contemporâneo dele, mas enfim, o Cesariny é um gozão.
- Cortesão é um poeta muito estimável, senhor.
- Isso é a sua versão do «muito interessante» do epc, não é? Francamente…
- Não posso é deixar de registar que nenhum dos membros deste clube acerta num único poema dos propostos no meu teste, apesar de todos se dedicarem mais ou menos à arte do verso. Assim como também me vejo forçado a registar a total ausência de fair play de quase todos.
- Ah bom, se quer falar antes do Barão de Coubertin, falemos.
- E se eu lhe fizesse um novo teste, agora com uma ode de um poeta português ao Barão de Coubertin?... Pode ser?
- Desculpe, mas chegou a hora de eu ir correr para o estádio universitário. 20 km por dia, meu caro. Melhor do que partir pedra. Aguça o espírito criativo, sabia? Adeus, adeus.