O Blindfold Test de Groucho
- Antes de mais, muito obrigado por ter aceitado este desafio, Sr. Serra.
- Ora essa, Groucho. Tenho todo o gosto.
- Confio em que o gosto não azedará com um eventual desgosto, como sucedeu com o Sr. Silvestre.
- Ele é assim, um tanto irritadiço. Não gosta de perder, é compreensível. Dizem-me que então quando se trata do FCP, fica intratável… Mas não é mau tipo…
- Longe de mim sugeri-lo, senhor.
- … e em todo o caso eu sou muito diferente, nesse aspecto.
- Folgo em sabê-lo. Mas vejo que já está instalado. Aqui tem então uma cópia do poema.
- Obrigado, Groucho. Deixe cá ler.
CAFÉ DE PENUMBRA
Escasso como a praceta defronte,
como a ilha, como o céu estrangulado
pelo aperto dispneico das vielas.
Café de penumbra e pouca gente
antiga e parecida ao tédio da manhã.
Três funcionários públicos (guarda-
-fiscal um) e dois empregados
comerciais debitando sentenças
em surdina. Um pracista
à míngua de clientes e o lazer
de um poeta de passagem.
Na mesa dos fundos, sob o claro
quadrilátero da janela – e para nossa
edificação – um arabista paulatino
traduz do francês um texto urdu.
- Felicito-o, antes de mais, pela escolha. Excelente poema.
- Desvanece-me, senhor.
- Bom, com toda a franqueza, isto é coisa inglesa. Quero dizer, mais ou menos traduzida da poesia inglesa do Movement e posterior. Deixe-me cá apertar a rede. Isto é mais ou menos tradução de Larkin, embora sem rima (graças a Deus!). Deixe-me cá então pensar nos nossos larkinianos… O Joaquim Manuel Magalhães de fins de 70, inícios de 80, de livros como António Palolo (Larkin e Gunn, a bem dizer), que ele depois estropiou irremediavelmente, quando o reescreveu?... Bom, aposto no Magalhães, apesar daquela referência ao francês, que não entendo. Devia ser inglês… Curioso, parece um poema sobre a Alexandria do Durrell. E uma das personagens (o poeta de passagem?) poderia ser o Kavafis. Um Magalhães entre Larkin, Hopper e Kavafis, digamos.
- Muito frio, senhor. Lamento.
- Uma hipótese tão laboriosa e brilhante... Avanço então para outros tradutores de Larkin… O Jorge Gomes Miranda? Bares é com ele, descrição minimal também. É certo que falta aqui a palavra «coração», mas enfim, há alguns poucos poemas em que ele não a usa. Vou nele: é do Jorge Gomes Miranda!
- Ainda não foi desta…
- Pensava que isto fosse mais fácil. O Groucho não dá mesmo uma ajudinha sigilosa, não?
- O Sr. Silvestre perguntou-me o mesmo. Não me obrigue a decepcioná-lo também.
- Compreendo. Bom, adiante. Dê-me um minuto para alterar os marcos geodésicos cá dentro… Bolas, como é que me esqueci disso? Isto tem de ser do Couto Viana. Lembra o Café de Subúrbio, do início de 90, que o Joaquim Manuel Magalhães tanto elogiou. Depois, há ali aquela referência oriental e o Couto Viana andou pelo Oriente. Se bem que o Oriente dele seja chinês e o do poema islâmico… Mas enfim, é do Couto Viana, agora nem pense em dizer-me que não!
- Vejo-me forçado a fazê-lo mais uma vez.
- Agora é que acho que é o fim da linha, sinceramente. Havia um grupo de poetas no Porto que se reuniram em volume intitulado, se não erro, Os poetas no café (ou «do café»?). Será de algum desses? Mas nem me lembro dos nomes deles… Pelo tom, podia ser do J. L. Barreto Guimarães, mas esse só soneta, e isto é forma livre… O Manuel de Freitas também explora este universo mas é mais bares decadentes e tascas, pelo que não dá. Desisto, Groucho. Satisfaça-me lá a curiosidade: de quem é?
- De Rui Knopfli, do livro A Ilha de Próspero, de 1972.
- Ele fazia disto lá longe em 1972? Não imaginava... Mas o Knopfli não é português, Groucho!
- Português e moçambicano e com uma costela de inglês.
- Tou lixado consigo! As regras deste teste deviam ser esclarecidas de vez.
- Sempre o nacionalismo! Estes intelectuais… E então a frase…
- … «A minha pátria é a língua…» patati patatá… Outra vez?! Começo a dar razão ao Silvestre: o Groucho é um abusador. E, ainda por cima, «lusófono».
- Não somos todos?
- Eu vivo em Salamanca, Groucho, sou carnívoro, a minha pátria é o chuletón de ternera (con pimiento verde, de preferência)!
- Vai-me desculpar, senhor, mas isso para mim é mais intraduzível do que o urdu…
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