Leituras do Groucho nas termas (enquanto não chega a crónica de sábado de Helena Matos)
O leitor provavelmente há-de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planiza qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que dela guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delícias, do que as impressões experimentadas no próprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias. As pequenas impertinências, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até doirar e poetizar a seu modo; esses microscópicos martírios, que de longe não avultam, actuam-nos, na ocasião, a ponto de nos inabilitar para o gozo do que é realmente belo. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero do heteróclito cozinhado com que se enche o estômago, a lama que nos incrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro, tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.
Só pelo preço de muitas jornadas se compra o hábito de ficar impassível no meio dos episódios destas pequenas odisseias, que atormentam e exaurem o ânimo dos Ulisses novatos; mas ai, quando se adquire esse hábito, também nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as comoções do belo.
Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos entusiasmo; analisa-se mais e melhor; porém a própria análise é a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginação mal têm cabida a paciência e fleuma, necessárias aos processos analíticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão à pátria com a carteira cheia de apontamentos; o entusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.
Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais
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