29 julho 2005

Desaforos


/…/ nenhum mal é tão grande que pior não pudesse ser. O desaforo vulnera. A insensibilidade pode ser pior do que a morte. Por exemplo. Manuel António chegou ao consultório ainda antes da hora marcada: ia saber o resultado de diversas análises, e estava naturalmente ansioso. Mas preparado para o pior. (O pior havia de vir, sim.) O médico anuncia-lhe então que sofre duma doença mortal e rara e que não tem mais do que um dia de vida. Manuel António chega a casa sereno. Conta à mulher, que se mantém serena (ou estupefacta, às vezes acontece). Vendo-a sem reacção, Manuel António pergunta-lhe: — Achas que hoje podíamos ir para a cama mais cedo e rebolar no palheiro como nos velhos tempos? A resposta foi a óbvia: — Claro, é a tua última noite. Assim se deu. Duas horas depois de se ter dado, Manuel António acorda a mulher: — Olha, mais uma vez…? E assim se deu. Duas horas depois, Manuel António acorda a mulher: — E outra…? Duas horas depois, nova solicitação, e a resposta da mulher: — Porra, Manel, vê-se mesmo que não tens que te levantar cedo amanhã!

F. A. Leite
Da «Proposta de candidatura ao Casmurro»