Defesa e ilustração didáctica da poesia
Devo confessar que nunca percebi as razões da popularidade propriamente didáctica do poema «As palavras», de Eugénio de Andrade. De facto, não há manual de Português, de um ou outro nível de ensino, que não inclua o poema, quase sempre em locais (e funções) de abertura ou fecho (melhor: de fuga, em sentido musical e, digamos, epistemológico) de matérias supostamente mais árduas, ou menos líricas. Ou então, e cumulativamente, como «resumo» lírico de uma secção gramatical ou paragramatical, confiando ao verso e à metáfora a redenção das asperezas e constrições da regra.
Não é relevante, para este efeito, o meu juízo sobre o poema, já que a questão independe dele e prende-se com a rentabilidade didáctica do texto em manuais de português. Américo Diogo dizia-me, em tempos, que o poema aparecia muito em manuais, e nas posições estratégicas antes referidas, para sugerir, de forma assaz persuasiva, que a poesia não só não é para ensinar, como é, em si, «o» inensinável. A opção por «dizer» as palavras numa sucessão de metáforas («um punhal», «um incêndio», «orvalho apenas») muito para isso contribui, já que a sugestão final é a de que não existe dicionário para as palavras senão o poético, isto é, um dicionário de intraduzíveis (e indizíveis) – posição relativamente estabilizada na Modernidade poética mas de rentabilidade duvidosa em situação didáctica. Qualquer análise atenta da ocorrência do poema em manuais não pode deixar de dar razão a Américo Diogo. O poema de Eugénio surge quase sempre em posições que resumem ex abrupto o poético como aquilo que escapa – e existe para escapar, por uma como que determinação ôntica – ao ensino, e à escola mesma. Ele ensina-nos os limites da escola, desde logo na leccionação do português e da literatura. Esta só é passível de ensino naqueles textos aos quais é possível fazer perguntas temáticas – Quem? Onde? Quando? Como? Porquê? Para quê? – e o resto é poesia (o resto, digamo-lo assim, pode e deve aspirar à condição de «As palavras»). O resto, insista-se ainda, é poesia porque a poesia é um desfiar de metáforas intraduzível, e menos ainda operacionalizável em contexto de sala de aula. A poesia, resumamos, é demasiado nobre para os plebeísmos (analíticos) da sala de aula.
Como é evidente, a conjuntura didáctica que usa deste modo «As palavras» é ruinosa para o próprio ensino da poesia, e legitima aquilo que sucede quotidianamente nas escolas: o descaso pelo texto poético em favor de todos os outros – os tais que é possível interrogar tematicamente. A questão levar-nos-ia longe, tanto mais que o que está também em causa nesta conjuntura perniciosa é a equiparação automática entre «ensino da poesia» e «ensino da lírica», como se além desta não houvesse poesia circunstancial, jocosa e satírica, humorística, visual, sonora, etc. (Gustavo Rubim disse-o uma vez de modo inexcedível em resposta a um inquérito da Relâmpago).
Seja como for, o ponto é que não vejo razões para cedermos a esta chantagem da lírica (e da metáfora) sobre o ensino da poesia e, prefiro eu dizer, do poema. No ensino não-superior a poesia pode e deve ensinar o poético tanto quanto o verbal e o idiomático, coisas que o poema de Eugénio em simultâneo não faz (sobretudo, nas formas como é mobilizado para os manuais). Ora, não é difícil encontrar poemas alternativos, e a meu ver vantajosos, a «As palavras» para a função que os manuais de português cometem em quase exclusivo ao de Eugénio. Em contexto «infantil», ocorrem-me logo poemas vários de Manuel António Pina ou Álvaro Magalhães. Aceitando contudo o jogo das alternativas, sugiro o seguinte poema de Rui Knopfli, do livro O País dos Outros (1959):
Amor das Palavras
Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor dos teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo, e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.
Ao contrário do de Eugénio, o poema de Knopfli não sobrepõe poesia, metáfora e inefável, aceitando as asperezas e insuficiências do jogo da nomeação, que se tornam aliás o tema central do poema. No plano linguístico, o poema de Knopfli entra por isso no jogo, sumamente pedagógico, da estranheza vocabular, fazendo do dicionário a personagem central que na literatura ele nunca pode deixar de ser, com a consequente percepção do carácter trabalhoso da produção de sentidos. Finalmente, o poema de Knopfli pulveriza uma versão do estético em que a organicidade comanda todas as lógicas do poema (formal, afectiva, lexical), optando antes por uma pluralidade paródica de registos, cujo correlato formal é uma discreta colagem de micro-sequências.
Talvez esta pequena «fábula» em tom digressivo se possa resumir assim: não há concepção do poético que não comporte em si uma concepção do ensinável (ainda quando o diga impossível ou indesejável). Admitindo este pressuposto, parece-me contudo paradoxal que um manual de ensino de português acolha, com tal sentido de hospitalidade, um poema que no fundo sugere que o ensinável do manual se deve deter ante o poético e o poema. Se admitirmos então que os manuais de português devem visar ensinar textos em português – literários ou não, poéticos e não-poéticos – não se percebe a insistência no poema de Eugénio.
A não ser que ele lá esteja por se prestar demasiado bem a um perverso jogo ventríloquo pelo qual o poema diz aquilo que a nenhum poema conviria dizer, sob pena de auto-anulação: que está ali para que a poesia se emancipe da escola. Terrível ilusão, pois no fim da história o que de facto sucede é que é a escola que, por intermédio de textos como «As palavras», tão inteligentemente usados pela didáctica, se emancipa todos os dias da poesia.
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