24 julho 2005

Corporis fabrica (V)


É a um corpo virtual que cabe configurar a consumação de um Corpo hiper—sensorial. Esse modo de Corpo existe como digitalidade que não distingue o dígito numérico do dígito dérmico ou do código genético. Allegra Geller — a inventora de jogos protagonista de eXistenZ de David Cronemberg [lembrar a teoria da nova carne] — manifesta uma sensorialidade exponencial pela mediação da Máquina. No filme, a Máquina de jogos é biológica, e está unida ao Corpo humano, substituindo o rato, por um cordão umbilical. Lembro a mão de Allegra Geller a acariciar uma parede rugosa, e que é como uma pele; lembro, ainda, o nariz dela a cheirar um depósito de gasolina, que é como um fluído corporal; lembro, numa palavra, a eroticidade da sua persona lúdica. Nos sucessivos jogos virtuais os corpos vão—se redefinindo por uma sensorialidade em progressão quantitativa. Vão libertando os sentidos do constrangimento do hábito, que os cerceia e os monotoniza até perder neles por completo a capacidade de percepção de tudo pela primeira vez. Trata—se de libertar os sentidos da ideia dos sentidos. Aumentar—lhe uma pura exterioridade, sem interior que os canalize: um puro fluxo, circulando em regime de acesso livre. O Corpo como um Buraco — que Allegra Geller não receia: o orifício fabricado na espinha dorsal é da ordem natural de uma Boca, como de resto a inventora de jogos mostra sem necessidade de palavras. A Boca não faz qualquer fronteira entre um interior e um exterior do Corpo. A Língua, os Pulmões, o Esófago, o Estômago, os Intestinos, o Escroto, o Ânus, são uma exterioridade às avessas. Este modo de corpo virtual espraia—se numa superfície sensorial única [um tecido], com a qual comparte espessura e limites. De jogo para jogo [trata-se de jogos sem regras e sempre outros], temos um Corpo que vai guardando cada vez menos Memória, isto é, cada vez menos Memória do jogo. Chega—se a um ponto [encenado no fim do filme] em que não tem qualquer sentido lutar pelo realismo ou pelo virtualismo; estamos numa posteridade da distinção real/ficção, distinção que define a Modernidade [cf. Godzich 1998: 157]. O Mundo libertou—se de causas e fins, de ideias e cópias. O corpo virtual, como libertação da sua sensorialidade, liberta o Mundo da sua Ideia, i.e., uniformizado pela Necessidade e a Causalidade: «Por tanto, nuestra idea de necesidad y causación proviene exclusivamente de la uniformidad que puede observarse en las operaciones de la naturaleza, en las que constantemente están unidos objetos similares, y la mente es llevada por costumbre a inferir uno de ellos de la aparición del otro. Sólo estas dos circunstancias constituyen la necesidad que adscribimos a la materia. Más allá de la conjunción constante de objetos similares y la consecuente inferencia del uno a partir del otro, no tenemos noción alguna de necesidad o conexión» [Hume 2001: 118]. No filme, a des-mentalização do Mundo é o corolário do avanço da Técnica. Assim, é no jogo virtual que o Corpo e o Mundo não são extirpados pelo hábito. Só nos termos desse jogo virtual [sem regras do jogo, puro Acaso] podem ser mediação hiper—sensível do sensível. No fim não restam Corpos de sujeitos: apenas duas Corporações que fabricam indistinguíveis jogos: eXistenZ ou TransCendenZ.
Imagem: game-pod de eXistenZ