18 julho 2005

Cavar em Ruínas, por Groucho

Os livros antigos pagam liberalmente a quem os atura.
Camilo Castelo Branco, Cavar em Ruínas


Cerram-se as plúmbeas nuvens do olvido sobre os nossos actos, bichos da terra tão pequenos, logo que os ponteiros do relógio giram completamente pela primeira vez sobre cada um deles. Somos, em verdade, criaturas do oblívio e da treva.
Louvemos pois, uma vez mais, a providência pela clarividente sonegação do dom de memória à descendência de Adão e Eva. Que seria na verdade de nós, portadores de tão escasso bornal de talentos, se acaso estivesse em nosso poder ter presentes a toda a hora os trastes inesgotáveis que atravancam o sótão da nossa memória individual, sobrepujada ainda pela dessa espécie sem género – a Humanidade?
Não fora assim, regressasse a cada segundo a pavorosa consciência dos grandes e pequenos actos, das maiores e das ínfimas criações do homem, como poderíamos nós suportar a pálida novidade, a tíbia surpresa dos livros que a cada dia acrescentam à livraria uma porção mais de papel disponível para a actividade insaciável dos vermes?
Tudo é em verdade velho, gasto e carcomido. E só a caritativa imputação de uma virgindade a todo o instante refeita in mente nos permite o encanto e maravilhamento, qual o de louçã e iletrada donzela, ante os prodígios ocos da humana criação.
Um século de revoluções, iniciado em símbolo e sangue no Palácio de Inverno, e um século e mais de meio de doutrinação proletária, deveriam ter-nos inoculado contra a possibilidade de criação de formas renovadas de poesia, e literatura, social. Contudo, não houve um só poeta da extinta centúria que, ao engenhar suas estrofes sobre os desvalidos da locomotiva do progresso, não se julgasse uma intacta vestal, incontaminada pelas corrupções do tempo e da memória.
Vigora pois, na república das letras, um peculiar arranjo nupcial entre esquecimento e virgindade. Não fora o desesperado amor da segunda pelo primeiro, assentindo este em esquecer o quão romba pode ser a virgindade que, iludido, desposa, e os bons dois terços, contando por baixo, de toda a poesia cantadora dos trinados copiosos da revolução no passado século, teriam esgotado o crédito dos leitores e das escolas que os propagam. Precisa-se pois uma vasta acção morigeradora que recupere, para as regiões tempestuosas da publicidade, todas essas composições, e compositores, que há quase dois séculos pavimentaram a via real da poesia social.
De entre eles, um lugar muito especial, por todas as razões, deve ser concedido a Tomás Ribeiro, cujos versos demonstram tantas vezes que a poesia não coexiste nas almas sem um norte mais ou menos idealista do seu destino e do destino dos homens. De entre tantos e tantos poemas nimbados pelo evangelho da caridade que o autor foi ao longo da vida espargindo pelos seus amigos e leitores, creio que nenhum é mais tocante do que aquele que este alto espírito, sempre animado de robustos propósitos de regeneração social, dedicou às creches. Ei-lo, meu silencioso e siamês leitor:


AS CRECHES


Comme ils dorment tous deux dans le berceau qui tremble!
Leur haleine est paisible et leur front calme. Il semble
Que rien n’éveillerait ces orphelins dormant,
Pas même le clairon du dernier jugement;
Car, étant innocents, ils n’ont peur du juge.
V. Hugo


- Um filho, um pequenino, aqui o tenho,
dei-lhe o meu seio agora, mas quem há de
em quanto no trabalho eu me detenho,
encarregar-se d’ele?
- A caridade.

- Ai pobre mãe que eu sou, porque preciso
prover à minha vida. A frialdade
vai regelar-me a filha! C’um sorriso
quem lhe dará conchego?
- A caridade.

- O marido perdi – chorado amigo!
Tenho dois pequeninos na orfandade;
ganho fora o meu pão. – Quem, quem abrigo
lhes dá na minha ausência?
- A caridade.

Lutamos co’a pobreza. O pai moureja,
eu corro, a trabalhar, toda a cidade:
Pobre criança!... que alma benfazeja
te servirá de mãe?
- A caridade,

a fonte d’água viva que não seca,
das tristes o refúgio, o exemplo nobre
que Cristo nos deixou; a que depreca
dos ricos o ceitil e o dá ao pobre.

Não receeis, ó mães, pelas crianças;
entregai-as; olhai; almas piedosas
vigiarão as vossas pombas mansas,
os dons do afecto convertendo em rosas.

S. Vicente de Paulo não fez mais.
deu exemplo a rainha, abriu a crèche,
é mãe, como vós sois! oh não temais
que da rainha o coração se feche

aos queixumes do pobre, aos desgraçados,
aos prantos da orfandade, à dor sentida,
às súplicas de mãe, aos inundados,
às doces comoções que lhe dão vida!

Lisboa - 11 abril, 1884


Tem Tomás Ribeiro na sua bossa poética mananciais inesgotáveis, que lhe permitem passar do poema patriótico à poesia ardida na fé de Cristo e, sem surpresa, àquela que traduz os ímpetos suaves do amor numa como que veneração silenciosa, tal qual adorar se deve o Incompreensível feminino. Mas a felicidade deste talento, que poetou também sobre as belezas da Índia portuguesa, é tal que abraça ainda as regiões tantas vezes ásperas daqueles a quem Cristo Nosso Senhor prometeu os céus, pela via do despojamento e da humildade de bens, que não de dons de virtude. A lição de caridade e filantropia que deste poema ressuma, o rumo que nele se traça para uma sociedade mutuamente compensada e solidária nos seus serviços e dedicações, do mais alto ao mais baixo, a emancipação feminina que nele se promete, não mostra tudo isto a inanidade da poesia social do século que ao de Tomás Ribeiro sucedeu? Que acrescentou esse século de tão notável a poemas como este, para que a poesia socialista de Novecentos seja lembrada e esta, socialista de facto, isto é, em actos que não apenas em vãs e balofas declarações, tão miserrimamente abandonada?
E que poesia social, dessa que recordamos nas selectas, consegue o equilíbrio miraculoso da queda no século com o terso vigor da inspiração, o esmeril do ritmo, o pleno tesouro da língua? Ninguém deveras rivaliza Tomás Ribeiro na melopeia, na amenidade, na doçura florentina dos ritmos. A poesia, ainda quando misturada às baixas realidades do mundo, muito ganha, na verdade, em não se esquecer da sua condição de religião do belo. A não ser assim, nada mais resta do que a coisa rochosa, e fragorosa, que para alguns a poesia social deve ser – e que, por nisso incorrer, não encontra leitores que nela se abonem para os seus generosos ímpetos solidários.
Laborioso erro, infrutífera ilusão, como este poema de Tomás Ribeiro tão convincentemente exemplifica.