11 julho 2005

Cavar em Ruínas, por Groucho



Os livros antigos pagam liberalmente a quem os atura.
Camilo Castelo Branco, Cavar em Ruínas

Com estremada justiça, Camilo chamou-lhe «o príncipe da lira portuguesa». E contudo, Tomás Ribeiro é hoje nome de alguém que consigo transporta o injusto labéu de «apoderado de Catilho» e figura maior do partido conservador na tão danosa «Questão Coimbrã». Danosa a vários títulos, como Fernando Venâncio esclarecidamente demonstrou, e danosa em particular para Tomás Ribeiro, cujo mimoso poema D. Jaime (melhor diríamos, mimosa epopeia pátria) passou desde então a sofrer as desconsiderações e chufas proverbiais quando ao preconceito vesgo se alia a desonestidade intelectual – tão frequente dentro dos muros austeros da universidade – de falar sem ler as obras em pauta, optando antes pelo papaguear acéfalo de juízos devorados já pela ferrugem do tempo e do intelecto. Nas palavras desconsoladas do homem de Seide, «O poema de D. Jaime não teve apoteose sem a consagração do martírio».
E tudo isto porque o injustiçado Castilho sugeriu, em rigorosa fidelidade às suas convicções de pedagogo probo e avesso a modas, que no plano moral Os Lusíadas muito deixam a desejar como livro que a mocidade possa guardar à cabeceira, com o acrisolado amor que se dedica aos livros que nesse subido local retórico dispomos. Como se isto não bastasse, Castilho atreveu-se a alvitrar o D. Jaime como poema que ao de Camões se substituiria com vantagem.
Quantos dos que hoje, à menção do D. Jaime, fazem aflorar aos lábios o ricto do desdém e da troça, o leram de facto? E desses, quantos o fizeram com a contensão de espírito e o amor da justiça necessários ao tão improvável acto a que chamamos «ler» - ler deveras e não por desenfado ou, pior ainda, por pura acumulação primitiva dos cabedais indispensáveis a uma certidão de literato? Quantos, pois, se banharam nas águas lustrais da forma ática e da tão vilipendiada virtude do amor da Pátria, que do D. Jaime manam abundantes como as fontes do Lima após as chuvas temporãs?
Bem poucos, decerto, pois se a moléstia do preconceito não tivesse a tal ponto contaminado o leitor do último século e meio, quem poderia, em seu são e recto juízo, deixar de sopesar com a indispensável equanimidade o que de perfeições sem par Tomás Ribeiro esparziu pela tão-só estrofe de abertura do D. Jaime, já pela vernaculidade da elocução, já pela propriedade do epíteto, já pela elegância da metáfora, já pelo rigor lógico da composição?... Não resisto a transcrever aqui esse fulgente rubi da nossa poesia de Oitocentos, em tudo aliás representativa do longo, grácil e robusto poema que abre:

Meu Portugal, meu berço de inocente,
lisa estrada que andei débil infante,
variado jardim do adolescente,
meu laranjal em flor sempre odorante,
minha tarde de amor, meu dia ardente,
minha noite de estrelas rutilante,
meu vergado pomar dum rico Outono,
sê meu berço final no último sono!

Só cérebros e corações muito ressequidos pela prosa do século poderão quedar-se mudos e hirtos ante o apelo destes cálidos versos e, bem-assim, do inédito cume a que o vate neles se alça, conseguindo ali compilar todas as idades, da inocente infância até ao último suspiro de mais uma transumante alma portuguesa de poeta.
Figuram-se alvorecidos os poetas de hoje numa aurora de originalidade quando se entregam à vetusta e cansada musa da urbe e do asfalto, do subúrbio e da tasca. E desconsideram os mesmos cultores da exangue musa de hoje a velha arte dos poetas que, como Tomás Ribeiro, fizeram do amor do terrunho a prévia condição da sua dedicação à res pública e poética. Fazem mal. Pois o amor da pátria é um outro nome para o singelo amor da família.
Do culto destas belezas da família e da pátria se fez a obra poética e política de Tomás Ribeiro. Sim, porque o poeta preclaro soube sempre alongar-se, em Tomás Ribeiro, não, como no perfil do vate da epopeia, no soldado em armas contra o infiel, mas no general do governo do Estado da Índia e de todos os ministérios que os seus multímodos talentos tão perduravelmente ornamentaram.
Nenhum episódio ilustra melhor a irradiação da obra poética de Tomás Ribeiro do que aquele narrado pelo bravo Serpa Pinto, na sua obra Como eu atravessei a África (vol. 2, 1881), em que Serpa Pinto é recebido na cubata de um rei africano. Transcrevo-o, oferecendo-o em meditação a todos os que engrossam o aranzel da depreciação ignara de obras que em si constituem alguns dos pilares do Templo da nossa poesia e, o que é o mesmo, da nossa alma:

Conversámos sobre coisas indiferentes e eu entendi não dever falar-lhe ainda dos meus negócios. Entre outras coisas, falámos a respeito de línguas diferentes e Lobossi pediu-me que falasse um bocado em português, para ele ouvir. Recitei-lhe as «Flores da Alma», do poema D. Jaime, e os pretos ficaram encantados ao escutar a harmonia da nossa língua, que o mimoso e grande poeta Tomás Ribeiro soube imprimir e fazer ressaltar naquelas estrofes singelas.

Ao contrário, pois, do que defendem aqueles para quem a natureza das coisas belas é apenas acessível a olhos formados na leitura diurna e nocturna de in-fólios (ou na frequência dos duros bancos das Faculdade de Letras), o episódio narrado por esse novo intimorato navegador de procelas que foi Serpa Pinto, demonstra que a grande poesia – a grande poesia de Tomás Ribeiro! – pode comover mesmo a alma de espírito pagãos, desconhecedores do seu culto. Pagãos, sim, mas não infensos à irradiação majestosa da urdidura do verso, da selecta escolha dos ritmos, do primor da rima, das pompas que engalaneiam as ideias grandiosas – e isto tudo apesar do seu desconhecimento do idioma de Camões! Assim se revelam comidas pela térmita implacável da verdade as fantasiosas lucubrações de certos românticos do Norte, como o Sr. Herder (se mo permitem os ilustres germanistas conimbricenses…), para quem entre língua e cultura de uma comunidade se produziria um laço orgânico, cujo bloquearia, ou pelo menos dificultaria seriamente, aos estrangeiros a contemplação das jóias entesouradas por um povo ao longo da sua história e difundidas por meio da vernaculidade da locução.
A grande poesia, que me perdoem os críticos e académicos, dispensa tais protocolos. A grande poesia, e abono-me agora nos ponderosos juízos do director do JL, de Manuel Alegre ou de Joaquim Manuel Magalhães, vive de uma comunicação directa e irreservada entre corações e almas. Muito danosa tem sido para a poesia a moléstia moderna que pretende o contrário, defendida por aqueles espíritos cujos vícios intelectuais há muito fizeram arder a porção de fósforo de seus cérebros, deixando-os tão carbonizados quanto os seus corações.
O sortilégio dos grandes poetas como Tomás Ribeiro é o de se amesendarem espontaneamente os seus leitores numa comunidade mística em torno das fulgências dos seus versos - por exemplo, numa cubata perdida nos interiores da África, com negros iletrados e ignorantes da portuguesa língua por ouvintes. Antes das letras, porém, existem os afectos e emoções comungáveis pela Humanidade inteira na sua marcha para a Luz da bondade. A isto se chama a universalidade da poesia. Ou antes, a poesia como universal e universo bastante.
Eis algumas poucas coisas das muitas que podemos aprender lendo o grande Tomás Ribeiro.