Alvor optimista*
Parecia arrebatado:
— Tive ontem uma conversinha bem curiosa com o Sr. Silvestre. Fiquei a perceber muita coisa…
— Ah sim? O quê, já agora?
— Olhe, isto, por exemplo: o senhor não desampara o tasco, passa aqui os dias enfadado, porque não tem trabalho, e não tem trabalho porque não tem alunos…
— Não seja parvo, Groucho. Já ouviu falar em «calendário escolar»? Prevê férias, não sei se sabe. E alunos não me faltam: ainda este semestre tive mais de cento e cinquenta, boa parte deles estrangeiros. Acho que nunca tive tantos.
— Não confere com o que leio nos jornais. Se fosse assim, as Faculdades de Letras até tinham futuro, ora essa.
— Essa treta do futuro é vício grave, Groucho. Já lhe disse mais do que uma vez que não ter futuro não significa necessariamente que acabe. Muita coisa sobrevive à sua função, ao seu objectivo, ao simples propósito com que foi criado. E quem sabe o que é o futuro? Em nome do futuro, liquida-se no presente muita coisa importante. Além de que o campo próprio das Faculdades de Letras é o passado, não é o futuro… a não ser em departamentos de messianismo.
— Vejo-o muito descontraído e não acredito. A verdade é que os alunos não acorrem, os números não mentem…
— Mentem, sim. Ou não… depende. Acabei de lhe dizer que nunca tive tantos alunos. Há muitos alunos interessados em estudar literatura, pode crer. Não há muitos, por outro lado, interessados em cursos específicos de literatura: como não os há para matemática ou geologia. É o resultado da ideia estúpida da universidade como fábrica de profissões. A universidade deve assegurar a possibilidade e a liberdade de os alunos estudarem o que lhes interessa, literatura ou matemática, ainda que, ao mesmo tempo, andem por lá na ilusão de que se formam profissionalmente. Sem essa liberdade, não existe ensino universitário.
— Quer dizer então que as Faculdades de Letras têm mesmo futuro?
— Não, isso não têm. Mas não quer dizer que acabem: quer dizer que todas as outras faculdades deviam dispor duma Faculdade de Letras.
— Não queria mais nada?
— Um mundo sem guerra, o fim definitivo da violência sobre as crianças, respeito pelos animais, uma alimentação saudável, alguém que me livrasse do gato e uma fundação que remunerasse o pessoal dos blogues…
*Aka Early fucking blogs
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