01 julho 2005

Alimentar a dependência

Trrrimm!
- Sim?
- É o Groucho, Sr. Silvestre. Não desligue, por favor!
- Ó homem, nem tanto! Mas o que se passa? Estou a achá-lo muito nervoso.
- É a sexta-feira, senhor! É sempre difícil, mas desta vez, talvez por causa do isolamento aqui em S. Pedro do Sul, está-me a custar ainda mais.
- A sexta-feira? E porquê? Jejuns por motivos religiosos?
- Se fosse só isso… O senhor, sempre a fingir que não é deste mundo, sempre a fugir às evidências… É que à sexta-feira estou há quase uma semana sem ler a crónica da Helena Matos, no Público
- Tou a ver…
- É sempre uma luta difícil, ao longo da semana, mas o pico da ansiedade é às sextas, como é fatal: imaginar o tema que ela abordará amanhã, o ângulo (que graças a Deus é sempre o exacto oposto do do rebanho)… Ainda se ela aparecesse na SIC Notícias, a fazer comentários, mas não, ainda é marginalizada por todos esses bastiões do politicamente correcto!
- Ó Groucho…
- Hoje, então, a ansiedade tem sido impossível! Impossível! Ainda para mais, o Pulido Valente faltou à porrada…
- Perdão?
- …à chamada, à chamada, no Público. Estou de todo, senhor, como vê. Voltei a fumar, imagine! Voltei a comer pastéis de nata! Almocei um ovo estrelado, contra todas as prescrições do meu médico! Bebi uma cerveja com álcool!
- Uma vasta teoria de catástrofes, Groucho!
- Já em desespero, vim para os meus aposentos, após o almoço, e pus-me a fazer aquilo que noutras sextas-feiras ainda me tem valido: ler todas as crónicas dela no Público.
- Mas como? Tem isso recortado?
- Todas recortadas e guardadas em bolsinhas de plástico num dossiê azul de nome «Helena». É o que me vale, enquanto não sai o livrinho.
- Aposto que terá título em latim, Groucho.
- Ficaria bem decepcionado se assim não fosse, senhor. Bem vistas as coisas, o latim é uma das últimas barreiras à aluvião do politicamente correcto, do multiculturalismo e dos estudos culturais: uma afirmação de intransigência intelectual, num momento em que abundam os charlatães que põem no mesmo plano Camões e António Variações! Pena é que já quase ninguém o entenda e por isso não reaja a todas as verdades que hoje têm de ser ditas, e que a Helena conjuga como ninguém em latim.
- Por mim, ficaria decepcionado se o livro não se chamasse Nec plus ultra
- Pois eu aposto em Usque quandum? Para bom entendedor, basta. Só que nem há livrinho nem crónica (só amanhã!) e eu não aguento. Resumindo: decidi assumir a minha dependência, senhor.
- Gesto corajoso e nobre, Groucho. Mas refere-se a dependência alcoólica ou sexual? É que nesses casos a coisa cura-se com conversa e, sobretudo, com abstinência…
- Mais grave, Sr. Silvestre, bem mais grave, tanto mais que abstinência está fora de causa. Já me informei e apanho daqui a pouco um autocarro para Viseu. Vou ao Centro de Atendimento a Toxicodependentes.
- Vejo que é de facto mais grave do que eu supunha…
- Já me conheço, senhor. Pelos meus sintomas, e pelo historial deles, se não tomo medidas em breve, entro em delirium tremens. Assim, vou à terapia de substituição e eles dão-me metadona. Dizem-me que o jornal chega a S. Pedro do Sul pelas 10 h da manhã. Acho que aguento até lá. So help me God, como se diz na terra do George.
- Do Jorge?
- George, senhor! George! Mas está na hora, já vejo o autocarro. Reze por mim, sim?
- Rezarei, Groucho. E olhe, leve o dossiê consigo…
- Cá vai debaixo do braço, senhor…
- …e não deixe de ler, nem por um segundo, até lhe darem a injecção. Se se distrai, a carência dá cabo de si.
- Não esqueço, senhor, não esqueço. Adeus, adeus…