Ainda sobre teleologia romanesca: Camilo vs. Eça
- Groucho, não pude deixar de notar o interessantíssimo diálogo que vêm mantendo o Sr. Baptista e o Sr. Silvestre, a propósito duma certa visão teleológica da história do romance português.
- É verdade, senhor. Eu até já perguntei há pouco ao Sr. Baptista o que isso era. Ouvida a explicação, fiquei logo com a impressão de que os casmurros não gostam muito de progressos teleológicos, sobretudo em matérias artísticas.
- Não se surpreenda com tal resistência, Groucho: os argumentos teleológicos não toleram casmurrices. Pior ainda, tratando-se de um debate romanesco, a hipótese teleológica actuaria como um apriori hermenêutico, empobrecendo irremediavelmente o exercício da interpretação.
- Será por isso que os críticos falam sempre em ambiguidade? É que às vezes as coisas parecem-me tão clarinhas… Eu só não percebo muito bem os editoriais do arquitecto que manda no Expresso.
- Aí tem V. razão; cada texto é mais impenetrável que o anterior. É um caso de textualização insondável do mundo português. Bom, no que diz respeito ao campo literário, note que a ambiguidade é contígua à legitimação profissional do crítico, Groucho.
- Dir-se-ia estarmos então perante um casamento que melhora a interpretação?!
- Desculpe, eu já ouvi isso em qualquer lado!
- Confesso, senhor, acabei de pilhar a expressão ao Sr. Baptista. É que me pareceu tão apropriada …
- Está perdoado. Voltando ao assunto romanesco, a questão está em saber se podemos esposar a hipótese em causa: a repressão crítica da ficção camiliana afastou o romance português da arte do romance. Trata-se de uma perda para além de qualquer dúvida razoável? É certo que Camilo aparece na narrativa como representando um estado primitivo e algo selvagem no romance nacional, mas as experimentações modernistas com a tal «arte do romance» acabaram também por conduzir o género a um tal estado de (auto)celebração formal que a gente se interroga sobre a viabilidade e a felicidade de tal opção.
- E onde foi isso, senhor?
- Admito que tenha sido maioritariamente uma celebração estrangeira, mas olhe que temos por cá alguns autores que escreveram em língua romanesca sem se preocuparem exclusivamente com ideias (teleológicas). Veja o Almada, o Ruben A., o Raul Brandão, o Manuel de Lima, os rumores do Almeida Faria, entre outros.
- Mas será isso uma tradição? Como ando a pensar em frequentar o curso de Teoria da Literatura na Universidade de Clássica, interessa-me sinceramente saber o estado da crítica. Já alguém fez o balanço dessas experimentações?
- Tem vindo a ser feito, mas geralmente em nome do autor de cada crítico, não tanto em nome de um discurso crítico capaz de pensar o romance não-eciano como tradição (in)existente.
- Lá está o senhor a praticar a ambiguidade profissional…
- Queria também dizer, Groucho, que o caso de Camilo, é justo reconhecermos que existe aqui um caso, amplifica na história do romance português a componente poetológica que apesar de tudo reentra como ideia (reprimida) pelas traseiras da casa literária.
- Não estou a seguir...
- Dizia que em Camilo o romance não nos aparece no estado transparente e pacificado que emoldura as «ideias novas» de Eça, ou as primas e o primos da sua imensa família romanesca. O estado de sobressalto poetológico do romance camiliano, perversamente entretido pela mão do escritor, pode aparecer ao crítico como uma vantagem relativamente ao esquecimento da forma praticado por Eça, justamente pela promessa intemporal da forma do «génio de S. Miguel de Seide».
- Será esta a razão para o Sr. Baptista ter falado no carácter moderno antimoderno de Camilo? A ser assim, a tradição do romance português seria predominantemente moderna; modernos e teleológicos foram os neo-realistas, mestres (algo provincianos) que gozaram de um tremendo ascendente intelectual sobre toda uma geração de romancistas ao longo da segunda metade do século XX. Note que ainda o Saramago…
- Não precisa de o dizer, Groucho. É o nosso único prémio Nobel. Temos de voltar a falar sobre isto, por agora queria apenas sugerir que a crítica do romance como forma e a crítica do romance como ideia devem ambas confrontar seriamente a crítica da recepção do romance português, pensar e confrontar os seus leitores, analisar a materialidade e a política do desejo romanesco; e com isto acelerar a secularização crítica da tal teleologia da história do nosso romance.
- Como assim? Então agora os produtos do espírito devem outra vez tudo às condições de produção, ou melhor, às condições de recepção?!
- Nem tanto, Groucho. Mas agora tenho mesmo de ir beber uma cerveja fresca.
<< Home