14 julho 2005

Aguadeiros

- Não sei se reparou no que se passou hoje nas TV’s, sobretudo na SIC Notícias.
- Quase não vi, hoje, com toda esta agitação no clube e o Sr. Baptista sempre a dar-me cabo do juízo.
- Percebo. Sucedeu que uma série de pessoas de relevo – Nuno Rogeiro, os quadrados do círculo, um ex-director do SIS – vieram defender o reforço de políticas securitárias em reacção ao terrorismo, com um inevitável cortejo de limitações e violações dos direitos fundamentais (que eles garantem que não senhor, não ocorrerão!). E, perante isso, os jornalistas limitaram-se a fazer perguntas cândidas. Um deles chegou mesmo a inquirir Nuno Rogeiro sobre se ele não achava que os «ortodoxos» dos direitos fundamentais iriam espernear…
- Curiosa expressão, essa de «ortodoxos», aplicada a quem defende os direitos, liberdades e garantias. E por jornalistas…
- Pois. É curioso, não é?, como o jornalista pode oscilar entre a versão mais acessível do herói épico nos nossos dias – o jornalista de guerra, por exemplo, mas também o homem que denuncia o Watergate – e o aguadeiro do consenso (pergunto-me aliás se não existirá uma secreta e profunda sintonia entre os dois). Consenso que ele se dispõe, com solicitude extrema, a fabricar logo que exista um clima publicamente favorável a tal.
- A questão é séria, senhor. As pessoas querem um polícia a cada porta. O resto – direitos fundamentais – é mesmo resto.
- Pois, qualquer dia ainda nos impingem um Patriot Act (que lamentável designação!) tão vergonhoso como o americano e o pessoal aplaude.
- Era se calhar ocasião propícia para um referendozinho… Aposto que ganhava quem defendesse uma lei de excepção dessa natureza, senhor.
- Longe vá o agouro. Mas sabe, aquilo que esta noite mais me impressionou não foi a força encadeada dos argumentos usados pelos defensores de leis de excepção anti-terroristas. Foi antes a percepção de que basta uma noite em que se sucedam opiniões a apontar no mesmo sentido para se criar a sensação de que não há alternativas. E, dentro de tudo isso, e como condição necessária de tudo isso, a complacência perversa dos jornalistas. Ainda há dias vi na mesma SIC Notícias uma reportagem longa (e miserável) sobre desempregados em busca de trabalho. Toda a reportagem estava edificada sobre um axioma majestoso: os desempregados são-no porque preferem o subsídio de desemprego a aceitar os empregos que lhes são propostos. A majestade do senso comum. E então sucediam-se os casos, quase sempre narrados por patrões, que ratificavam sem mácula o axioma.
- Mas não me vai dizer que isso não sucede, senhor? Só eu, conheço uma série de gente nessa situação.
- Não faça sociologia selvagem, Groucho. Sabe a quanto monta o subsídio de desemprego? Acha que alguém se contenta com isso a ponto de rejeitar boas ofertas de emprego? E se houver uma percentagem mínima de pessoas que o façam, isso serve logo para uma generalização em reportagem? Olhe, na dita reportagem era nítido que os «patrões» entrevistados pertenciam quase todos àquela estirpe de donos de lojas em centros comerciais. Sabe quanto se paga aí a um/a funcionário/a, e em contado, claro, para obviar a coisas chatas como a segurança social? Eu sei, pois tenho vários/as ex-alunos/as nessa situação. Em muitos casos, se a pessoa viver longe do emprego, mais vale de facto ficar em casa com o subsídio, pois o mais provável é perder dinheiro com o salário proposto, ganhando em contrapartida um horário pesadíssimo.
- A vida está difícil para todos…
- Sim, claro, mas ainda assim mais para uns do que para outros… Mas volto à questão: que diabo de jornalismo é este em que uma reportagem, e bem longa e sobre tema de relevo social, só serve para ilustrar uma posição já bem conhecida e não para a debater? Um jornalismo de aguadeiros, é o que é!
- Mas o senhor queria que os jornalistas fizessem a revolução, é?
- Mas eu quero lá saber da revolução! Eu só não percebo é como se faz uma reportagem daquelas e não se conclui pelo óbvio: que os salários reais estão a baixar pronunciadamente, à excepção dos de gestores e afins, pelo que há muita gente a viver no limite; que a protecção social se esburaca e no fim há-de ser só o buraco do queijo com o remoto cheiro dele (quem tiver dinheiro que pague seguros); que estamos a viver em sociedades cada vez mais desiguais; etc. Será pedir demais, a uma ambiciosa reportagem sobre o desemprego, que considere estas questões?
- O senhor está a pedir aos jornalistas que produzam ideologia.
- Ah pois, e culpar os desempregados por não terem emprego não é produzir ideologia: é evidência empírica, claro! A ideologia, como sabemos, é sempre do vizinho. Repare que eu não peço à jornalista em causa que conclua que o grande responsável pela degradação das condições de vida nas nossas sociedades é o dogma acéfalo do livre comércio, entoado na tonalidade de quem, enfim, entreviu o fim da História. Isso seria pedir a uma jornalista o que ela não deve dar, tanto mais que até pode legitimamente discordar desta minha conclusão. Mas há um mínimo, ético e profissional, que não está aqui a ser desempenhado – nem quando o jornalista pergunta a Nuno Rogeiro se não acha que os «ortodoxos» dos direitos humanos irão protestar.
- Como o senhor sabe, a classe jornalística preocupa-se muito com questões deontológicas. O que refere são manifestamente excepções à norma.
- É curioso como as classes que mais se preocupam com deontologia (jornalistas, advogados, médicos) têm tantas excepções à norma… Essa sua tirada, meu caro, até parece um dos aforismos do Karl Kraus sobre a imprensa. Só espero que o António Sousa Ribeiro os traduza e edite um dia destes. Havia de ser um volume mui pedagógico.
- O senhor está amargo.
- Diga antes amargo-doce, que é aquilo que, no máximo, as coisas boas da vida são. Amargo era o Kraus e, pelo que se vê, ainda não o era o bastante.
- Uma tiliazinha, senhor?
- Pode ser. Mas sem açúcar, não se esqueça.