Ética e gramática
- Não pude deixar de reparar no ar abatido do Sr. Baptista, Groucho…
- Uma lástima, Sr. Silvestre, uma lástima. Ver aquele robusto talento gramatical soçobrar num iceberguezito da regência verbal, é coisa que nos deixa amargos com a vida.
- A mim, o que sempre me faz espécie é a desproporção do investimento ético – porque é de ética que falamos – que a gente das Letras faz em questões de gramática.
- Mas como não, senhor, se a ordem da gramática é a ordem do mundo?
- Caramba, Groucho, não o sabia tão adepto de teorias da correspondência. Ou andou a ler neurociência?
- Acredito mais na fenomenologia e na redução eidética, senhor.
- Bom, fiquemo-nos antes pela ética, Groucho. Acha mesmo que um lapso gramatical (e já nem menciono os de ortografia, onde tanta ética também se vaza) pode produzir um hiato ontológico, com o desconforto subsequente? A gramática é mesmo uma questão moral ou apenas gramatical?
- Vem bater a má porta, senhor. Nenhum mordomo pode deixar de acreditar nisso. O que seria de nós, e do mundo, se questionássemos ou infringíssemos a minuciosa gramática da nossa performance?
- Vejo então que se solidariza com o Sr. Baptista.
- Integralmente. E mais, sabe de quem é a responsabilidade de lapsos destes?
- Neste caso, suponho que do Sr. Baptista; ou do Metro…
- O Sr. Baptista é o menos culpado da longa cadeia de irresponsabilidades envolvida. Porque tudo começa, e em rigor acaba, no facto de não possuirmos um bom dicionário de verbos que resolvesse esta armadilha no Metro. Acaso ele existisse, e o Sr. Baptista, chegado a casa, resolveria de imediato as suas dúvidas. Como qualquer avisado cidadão francês, espanhol, italiano, alemão, e estou mesmo em crer que brasileiro, pode fazer.
- A culpa, então, é do «sistema»?
- Sem nenhuma ironia o digo, senhor: a culpa é, toda, do omnipresente «sistema» da nossa incúria no que toca aos instrumentos da correcção línguistica. De mais ninguém.
- Como amigo do Sr. Baptista e admirador da sua bossa gramatical, fico aliviado. Já agora, Groucho, lembre-me amanhã de encomendar um bom dicionário de verbos brasileiros para oferecer ao Sr. Baptista como surpresa. Confirme-me só: diz-se «lembre-me de encomendar», não diz?...
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