A sineta do mandarim
- Não pude deixar de ouvir a sua conversa com o Sr. Baptista sobre morte mediática e morte biológica, Groucho.
- Não me diga que também já lhe aconteceu?
- Como o Sr. Baptista esclareceu, os cidadãos não-mediáticos não são afligidos por essa experiência ante mortem, graças a Deus. Já basta a outra, a indesejada das gentes. Mas já me aconteceu assistir à morte de alguém que julgava morto há algum tempo. Claro que «assistir» é aqui uma força de expressão, pois eu estava por cá e a pessoa em causa morreu na Alemanha. Por outro lado, «assistir» é curto, pois de certo modo participei dessa morte.
- Como assim, senhor? Já sinto o arrepio do mandarim e da sineta…
- E com razão, Groucho. Eu explico. Há uns anos, no decurso de uma aula, vi-me na necessidade de introduzir a questão do «círculo hermenêutico». E nessa altura, como não há volta a dar-lhe, referi-me a Gadamer. Posso aliás dizer-lhe o dia dessa aula: 13 de Março de 2002.
- Caramba, que memória de elefante!
- Nada disso, como já vai perceber. Bom, apresentei brevemente o pensamento de Gadamer sobre o «círculo hermenêutico» e, a certa altura, apercebi-me de que estava a ir longe demais no desprezo pela biografia do autor, pelo que a minha má-consciência me impôs a referência às datas fundamentais da vida e obra dele. Sobretudo, 1960, ano da edição de Verdade e Método. Como costumo dizer às estudantes (e a um ou outro escasso estudante), uma data muito reconfortante para todos nós, já que indica que Gadamer publicou o seu grande livro aos 62 anos. Tivesse ele morrido aos 61, e seria apenas uma nota de rodapé na história da hermenêutica. Assim, ainda temos tempo…
- Uma sugestão, mais do que reconfortante, verdadeiramente catártica, senhor!
- A quem o diz. Bom, continuando. Nessa altura, como me acontecia sempre que nos últimos anos comprava mais um livrito de ensaios soltos dele, perguntei-me em voz alta, junto das alunas: «Será que ainda é vivo? Se for, terá já mais de 100 anos… O mais provável é já ter morrido sem que tivéssemos dado por isso». Imagine o que me aconteceu passadas umas horas?...
- Então?
- Chego a casa, ao fim do dia, e vou à net ler jornais. Destaque na secção cultural das «Notícias na Hora»: «Morreu Gadamer».
- Caramba, que funesta coincidência.
- Bem o diz. Percebe agora por que razão me lembro do dia da aula? Foi o dia em que, inadvertidamente, como o Groucho dizia há pouco, agitei a sineta do mandarim. Como lhe dizia, de certo modo assisti e mesmo participei dessa morte. Gadamer era já uma criatura póstuma nessa altura, como fatalmente sucede a quem dobra os 100, e suponho que os jornais decentes deste mundo até já teriam o obituário preparado há uns tempos. Mas ainda hoje, sempre que falo nele nas aulas, ou que tiro um livro dele da estante, sinto uma estranha comichão moral, se o posso dizer assim. E sabe como é que me coço?
- Bem gostava de saber, senhor.
- Olhe, contando toda esta história às estudantes (e ao tal estudante escasso), sempre que lhes falo de Gadamer. Uma espécie de versão moral do eterno retorno: contando a minha «participação» na morte dele, consigo o perdão cúmplice das estudantes (e do estudante).
- Será isso o «círculo hermenêutico», senhor?
- Não exactamente, Groucho, não exactamente.
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