Sem ânimo para brincadeiras
― Que é lá isso, Groucho? O senhor a juntar recortes de jornal?
― A aparência é essa, Sr. Rubim, mas a verdade é outra. E é outra, desde já lho digo, por sua causa.
― Minha? Não estou a ver…
― A ver está, não está é a perceber o que vê.
― Por favor, evite as distinções especiosas. Tiram-me a vontade de conversar, o senhor conhece-me...
― Não interpretarei essa sua tendência para se entediar com o rigor. O que sempre lhe explico é que não estou simplesmente a coleccionar artigos de jornal. Por influência sua, passei a dar atenção aos escritos do Sr. Vasco Pulido Valente e de tal maneira que não me basta lê-los: tenho de conservá-los. Tenho aqui as três crónicas deste fim-de-semana. Recuso-me a confundi-las com o material para reciclagem que é o resto do jornal onde vêm incluídas. Particularmente a crónica de sábado…
― De sábado? Groucho, o senhor não tem razões para desprezar assim o resto do Público desse dia! Então e a crónica da Helena Matos, com aquele magnífico título em latim: «Cuo amentiae progressis estis?» Nem leu, aposto!
― Não se meta em apostas: olhe que ainda perde. Essa senhora cita elogiosamente o epigrama dum professor espanhol para explicar um assassínio que ocorreu na sua escola: «Aqui não há causas nem consequências. Aqui o que há são navalhas.» Estranhei esta filosofia da navalhada sem contexto e tentei informar-me sobre as inclinações intelectuais da cronista. Pois bem, garantem-me que, além de crónicas, escreve livros sobre figuras históricas. Dou graças a Deus por nunca os ter lido. Em que ponto não iria a minha loucura se me desse para ler biografias sem causas nem consequências!
― Desconfio que o senhor se descarta com elegância da reflexão sobre o triste episódio da praia de Carcavelos. Pois tinha nesse mesmo jornal abundante matéria que o ajudasse…
― Abundante, diz muito bem. Suspeito que, à semelhança da divertida conjura de saltimbancos do romancista Albert Cossery, há hoje uma conjura de cronistas para tramar a conversão dos jornais em departamentos do Ministério da Administração Interna.
― Brinca com coisas sérias, Groucho.
― Nada disso. Mas seria legítimo privilégio da idade, se o fizesse, não concorda? Infelizmente, cá estou eu (por culpa sua, insisto) a guardar esta crónica onde o Sr. Pulido Valente nos garante que a Europa «como entidade política, parou para sempre num híbrido sem futuro». Se não for eu, será o senhor a confirmar no futuro que o epitáfio da Europa ficou gravado ― para sempre ― na última página de um periódico português. No fim da festa, o peso da melancolia não deixa ânimo para brincadeiras.
― A aparência é essa, Sr. Rubim, mas a verdade é outra. E é outra, desde já lho digo, por sua causa.
― Minha? Não estou a ver…
― A ver está, não está é a perceber o que vê.
― Por favor, evite as distinções especiosas. Tiram-me a vontade de conversar, o senhor conhece-me...
― Não interpretarei essa sua tendência para se entediar com o rigor. O que sempre lhe explico é que não estou simplesmente a coleccionar artigos de jornal. Por influência sua, passei a dar atenção aos escritos do Sr. Vasco Pulido Valente e de tal maneira que não me basta lê-los: tenho de conservá-los. Tenho aqui as três crónicas deste fim-de-semana. Recuso-me a confundi-las com o material para reciclagem que é o resto do jornal onde vêm incluídas. Particularmente a crónica de sábado…
― De sábado? Groucho, o senhor não tem razões para desprezar assim o resto do Público desse dia! Então e a crónica da Helena Matos, com aquele magnífico título em latim: «Cuo amentiae progressis estis?» Nem leu, aposto!
― Não se meta em apostas: olhe que ainda perde. Essa senhora cita elogiosamente o epigrama dum professor espanhol para explicar um assassínio que ocorreu na sua escola: «Aqui não há causas nem consequências. Aqui o que há são navalhas.» Estranhei esta filosofia da navalhada sem contexto e tentei informar-me sobre as inclinações intelectuais da cronista. Pois bem, garantem-me que, além de crónicas, escreve livros sobre figuras históricas. Dou graças a Deus por nunca os ter lido. Em que ponto não iria a minha loucura se me desse para ler biografias sem causas nem consequências!
― Desconfio que o senhor se descarta com elegância da reflexão sobre o triste episódio da praia de Carcavelos. Pois tinha nesse mesmo jornal abundante matéria que o ajudasse…
― Abundante, diz muito bem. Suspeito que, à semelhança da divertida conjura de saltimbancos do romancista Albert Cossery, há hoje uma conjura de cronistas para tramar a conversão dos jornais em departamentos do Ministério da Administração Interna.
― Brinca com coisas sérias, Groucho.
― Nada disso. Mas seria legítimo privilégio da idade, se o fizesse, não concorda? Infelizmente, cá estou eu (por culpa sua, insisto) a guardar esta crónica onde o Sr. Pulido Valente nos garante que a Europa «como entidade política, parou para sempre num híbrido sem futuro». Se não for eu, será o senhor a confirmar no futuro que o epitáfio da Europa ficou gravado ― para sempre ― na última página de um periódico português. No fim da festa, o peso da melancolia não deixa ânimo para brincadeiras.
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