15 junho 2005

Sans papiers

— Então, Groucho, ouviu o Sr. Quintais dizer ali que nem tem carta de condução?
— Esforço-me por nada ouvir quando não falam comigo, senhor. Desculpe-me se, por outro lado, não vejo nisso motivo de admiração.
— Porquê? por ele ser poeta ou por ser antropólogo?
— Abstenho-me sempre desse tipo de imputações, senhor. Acho-as vulgares, ao cabo, com sua licença, estúpidas. Pode ser traço contingente, nada deliberado, acidente ou cicatriz de acidente. Trabalhei em tempos para um eminente jurista que não conduzia porque falhava inexoravelmente no exame de código. A arte do raciocínio jurídico não transitava — calha dizê-lo... — para a discriminação de subtilezas envolvendo farolins e carros de bois.
— Há cérebros assim constituídos. Não é estupidez, mas coisa moral: uma espécie de aversão profunda à promiscuidade. Mas esse sabia pelo menos mexer no carro?
— Desembaraçava-se. Aliás, pertinácia estava ali. Acabou por conseguir. Comprou logo um Mercedes.
— Para compensar o atraso ou para passar despercebido no trânsito?
— Suponho que ambas as coisas, senhor. E se me permite, conto-lhe caso pior. Acolhi o ano passado um cidadão brasileiro, ou melhor, um brasileiro que não era cidadão. Executivo de uma grande empresa, entrou aqui com passaporte emprestado por um amigo, o senhor acredita? Homem excepcionalmente inteligente, e pude ver que muito lido, contou-me que num acesso de cólera queimou todos os papéis há vinte anos. Ficou sem nada que o identificasse enquanto cidadão: nem carteira de identidade, nem de condução, nem pagava imposto de renda, como lá dizem. Tão-pouco cartão de crédito. Nunca me disse como conseguia trabalhar — acho que aqui pelo menos seria impossível —, nem se guardava o dinheiro em casa ou no banco. Naturalmente, não votava.
— Era radical, politicamente, quero dizer?
— Não creio. Cicatriz de acidente: foi cólera mesmo. Convenceu-me de que, no acesso de cólera, qualquer homem se torna energúmeno, por definição: pode praticar os maiores desacatos, matar a mulher ou dar uma martelada no vizinho. Alguém tem que pagar — é a lógica da cólera. No caso dele, quem pagou foi o Estado brasileiro, que entretanto nem deve ter dado por isso.
— Por acaso não terá sido ele quem escreveu aquela novela notável, Um Copo de Cólera, que anda por aí atribuída a Raduan Nassar?
— Não, senhor. Um homem sem papéis não escreve livros.