18 junho 2005

Árvores III (e final)

- Eis-me de volta, senhor. Tinha falado dum segundo caso, antes de sermos interrompidos…
- Sim, o de Soeiro Pereira Gomes. Não se trata exactamente de uma última frase, mas anda lá perto. Como sabe, ele morreu na clandestinidade, dirigente que era, e importante, do PCP. Em 1949, muito doente, com um cancro nos pulmões, esteve por uns tempos no Porto, a ver se o partido conseguia metê-lo num barco, em Matosinhos, que o levasse até Londres, para se tratar. A tentativa fracassou. Existe uma evocação, verdadeiramente cativante, dessa última estadia de Soeiro no Porto. É da autoria de Rui Perdigão e encontra-se no seu livro O PCP visto por dentro e por fora. Memórias, judiciosas e serenas. Perdigão, de uma família de industriais do norte que deu grande parte dos seus bens ao partido, não era uma pessoa qualquer no PCP, que viria a abandonar muito mais tarde, na sequência da invasão da Checoslováquia. Foi ele, mais o irmão, quem comprou os automóveis que conduziram Cunhal e outros líderes do PCP de Peniche a Lisboa, na famosa fuga em 1960, e foi ele quem conduziu o Cadillac que transportou Cunhal. O texto em causa intitula-se «O último ‘ponto de apoio’ de Soeiro Pereira Gomes», e talvez voltemos a falar dele, pois levanta uma curiosa questão filológica sobre os Contos Vermelhos de Soeiro – questão que os editores de Soeiro escamoteiam, suponho que por razões políticas.
- Mas as árvores, senhor?...
- Acalme-se, Groucho. O retrato de Soeiro nessas páginas, como disse, é cativante, pois Perdigão faz questão de relevar a diferença entre Soeiro e outros militantes que se acolhiam temporariamente a esse «ponto de apoio» (um andar no nº 213 da Rua do Breyner, na zona de Cedofeita). Soeiro, para lá da política, falava de arte e discutia-a, interessava-se pela vida dos e das camaradas em geral, era um conversador infatigável. A tal ponto que as pessoas que com ele conviveram naquele período tinham dificuldade em admitir que estavam a falar com um homem muito doente. «Doente, muito doente, aquele homem? Talvez, mas falava, ria, contava tantas histórias com tanta graça, animava de tal maneira a vida na nossa casa, que não parecia sofrer ou inquietar-se especialmente com a saúde», nota Rui Perdigão. Apenas uma vez esse comportamento abriu uma brecha. Foi quando, segundo Perdigão, o viram

contemplar estranhamente um castanheiro de belo porte, que havia num quintal das traseiras, e dizer coisas tristes, como ele não costumava dizer, sobre árvores que vêem homens nascer e que vêem homens morrer, sobre árvores frondosas que ele vira cair por terra, em plena pujança…

- Ah bom, cá temos a árvore, sim senhor. Mas, agora que conheço o texto, não me parece que Soeiro a veja mais do que Herculano. Pelo contrário, parece-me que a árvore é já representada de acordo com uma certa ética e épica comunista: árvores frondosas que se abatem mas que, na própria lógica material da natureza, e da história, serão logo substituídas por outras. Assim como Soeiro seria logo substituído por outro militante nas suas tarefas partidárias. Uma cena da didáctica comunista, não?
- Bem visto. A mim toca-me sobretudo – mas convém notar que estamos perante uma transcrição e não um discurso directo, pelo que é difícil ser taxativo – a nota antropomórfica na frase «árvores que vêem homens nascer e que vêem homens morrer», que não encontramos em Herculano. Isto toca-me pois em Herculano não se chega a este extremo - «Quero ver as árvores», diz ele de modo singelo – que é simultaneamente um caso de materialismo (árvores e homens são um continuum só) e de humanização da natureza. Aquilo que por um lado se dá à natureza (o continuum), é-lhe logo sonegado pela sua humanização: a natureza só faz sentido em função de nós, homens. Nós somos natureza e somos como ela: a natureza é o nosso método histórico. É a nossa política. É a nossa utopia.
- Não estaremos a esquecer em excesso que não se trata de um texto teórico mas de uma nota melancólica de alguém que vai morrer, senhor? Isso não justifica esse deslize?
- Eu diria que o explica, mas não me parece que seja deslize. O materialismo comunista, como o comunismo em geral, é ainda um humanismo, e com maiúsculas, e isso explica muita coisa. Explica até esta naturalização do símbolo, como se um castanheiro não pudesse em caso algum ser apenas um castanheiro, mas antes um… um tropo no mundo fenomenal, se o posso dizer.
- Percebo. Deixe-me acrescentar esta nota especulativa que me ocorreu agora, se me permite, senhor: é como se cada um de nós, chamemo-nos Herculano ou Soeiro, antes de vermos a árvore nos vejamos a ver a árvore, dentro da retórica tão reconhecível da cena (um homem que vai morrer contempla uma árvore). Como a criança que corre atrás duma bola sobre a relva e que nunca é aquela criança ali, mas a criança que na relva corre para que eu me emocione, como sempre sucede nessa cena que vimos tantas vezes antes. Mas isto não é também o Kitsch na versão de Kundera? «Acordo categórico com o ser»?
- Suponho que sim, Groucho. Frases definitivas à hora da morte, árvores esvaziadas de si mesmas, cenas saturadas de sentido(s), homens que se agarram em desespero a símbolos, homens que repetem situações e emoções do restritivo catálogo da vida. Déjà vu. Olhe, Groucho, traga-me um grogue, se faz favor. Da ilha de Santo Antão. Bem forte. E acompanhe-me, já agora: tenho uma fabulosa anedota erótica para lhe contar.
- É pra já.