Árvores II
- Aquela das alfaces, senhor…
- Fiquemo-nos pelas árvores, Groucho. Sabe que sempre achei curiosas as frases dos escritores, ou pensadores, quando estão para morrer? Dir-se-ia que é essa a sua diferença específica: produzem frases memoráveis à hora da morte. Provavelmente a razão é mais comezinha e tem antes a ver com o facto de escritores e pensadores serem objecto do trabalho de biógrafos. E que melhor maneira de rematar uma biografia que uma frase memorável?
- «Tragam-me os óculos…».
- Pois. Um grande desarrincanço de Gaspar Simões. Mas a minha preferência vai para frases de escritores que à hora da morte se referem a árvores. Queria expor-lhe dois casos. O primeiro, Alexandre Herculano. Bulhão Pato, nas Memórias, refere uma das últimas frases de Herculano, na madrugada do seu último dia de vida. Ora leia aqui:
A luz, que entrava pelas frinchas da janela, sobrelevava já ao clarão mortiço da lâmpada acesa no quarto próximo ao do enfermo. Alexandre Herculano disse:
- Abram a janela. Quero ver as árvores.
- Estranhamente comovente, senhor.
- Também acho, Groucho. Uma última vontade que é um apelo a uma derradeira memória deste mundo. E o emblema do mundo, nesta despedida, são as árvores que estão lá fora. Há algo de sublime, em sentido técnico, nesta cena em que o mundo entra no quarto do moribundo por meio de um símbolo tão forte, tão avassalador mesmo, como as árvores. Todo o humano, no fim, alimentará a Natureza, que perdurará indiferente, etc.
- Pois, mas não sei se Herculano de facto chega a ver árvores, ou vê antes nelas o símbolo do que referiu, senhor.
- Desconfio que tem razão, Groucho. Lembra-se do travelling (mais uma panorâmica, em rigor) sobre a árvore majestosa a abrir o Non! (filme insuportável, aliás) do Manoel de Oliveira? A ancestralidade da nação, a sua força perene, etc. É-nos de facto muito difícil «ver» a natureza. Acho que nem Herculano, ao morrer, a viu. Ou se a viu, isso durou fugazmente, antes do símbolo e da cultura tomarem conta da árvore e a transportarem para a transcendência. Mas chamam-no ali de novo, Groucho. Vá lá, vá lá, que estou a açambarcá-lo.
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