18 junho 2005

O risco da escolha

Chamei-o, enquizilado.
— Parece que andou a lamentar-me junto do meu amigo Silvestre como se eu fosse algum Olavo Bilac que errou uma mesóclise…
— Apenas manifestei prontamente a minha solidariedade.
— Agradeço, mas acha mesmo que fui vítima da falta dum dicionário de verbos? É que, se acha, tenho que lhe dizer que lhe escapou o mais importante.
— Estou pronto a admiti-lo, senhor. Embora arrisque que o resultado foi perfeito: todos os erros apontados, todas as soluções correctas enumeradas.
— Aí está: o importante não está no erro, está na errata. Primeira ideia: a correcção do erro é ela mesma passível de correcção. Ideia trivial, mas que, se considerada, neutraliza a tentação purista. Não raro os erros se corrigem reproduzindo-se na própria correcção. Segunda ideia: a errata consiste num alargamento de possibilidades.
— Estou também pronto a deixar-me convencer pela demonstração…
— Repare. Apresentei primeiro duas possibilidades. Depois, na errata, eliminei uma e acrescentei outra. A segunda errata recuperou a eliminada, e daí resultaram três.
— Havia duas, depois menos uma, depois três. Aritmética, além de gramática?
— Não seja impertinente. A gramática gera o rol das possibilidades. Perante o erro, ou o que se presume erro, gera-o pelo processo da errata: quanto mais se prolonga a errata, maior o número de possibilidades. Mas a gramática não fornece qualquer regra para decidir: entre várias, qual delas escolher? Essa escolha, em rigor, não tem regra. Mais ainda: a gramática não fornece regra para a possibilidade que o rol não prevê nem interdita. Aquela a que chamamos inventiva: qualquer coisa que se deduz da regra mas a regra por si só não gera.
— Perdão, senhor, por acaso não pretende que o Metro seja criativo no uso da língua…
— Não lhe fazia mal, mas a frase do Metro é apenas um exemplo. O lastimável não é a falta de uma ou outra preposição no sítio certo, é a escolha sem consideração de possibilidades. O erro, quase sempre, denuncia o uso mecanizado, rotineiro, simplificado, embrutecido, o que quiser: como se não tivessem escolha por só haver uma maneira de dizer qualquer coisa.
— Posso deduzir então que não partilha aquela ideia da língua fascista porque obriga a dizer?
— Nem partilho nem rejeito. Decerto a língua implica sujeição: é uma herança, está sempre antes de nós. Mas obriga a dizer para permitir dizer. O senso comum é que presume uma autoridade absoluta. Quando temos dúvidas de gramática, perguntamos: «Diz-se ‘pode-se dizer’ ou ‘pode dizer-se’?» Note aquele impessoal «diz-se»: equivale a «devo dizer», rasura a escolha individual ou singular, sublinha a sujeição à regra ou à norma. E invariavelmente sinaliza o embaraço do sujeito perante o risco da escolha.
— Passarei a ter isso em mente, senhor. O risco da escolha… é essa a sua ética em matéria de gramática?
— Não me dê manteiga, Groucho.