27 junho 2005

O parasita (meta-qualquer-coisa-mente*, 2)

Parece que certas pessoas acham que um blogue sem comentários dos leitores não é um verdadeiro blogue. Tivemos aqui uma mensagem, há uns dias, de alguém que nos dizia ter perdido a vontade de ler quando percebeu que não podia comentar. Na verdade, podia e pôde; e na verdade, comentou, por e-mail, dizendo isso mesmo. Esse tipo de comentário, porém, é que não satisfaz — nem ao comentador nem aos comentados. O fenómeno é curioso, para não dizer extremamente interessante.
As mais das vezes, a discussão restringe-se ao plano moral. Ainda hoje, um bloguista veterano, Pedro Mexia, reiterava que a caixa de comentários abre o blogue aos canalhas, potencia a baixeza e obriga o bloguista a fechar aos prevaricadores a porta da liberdade de expressão que abriu a todos. Com o devido respeito — e até solidariedade, porque imagino o que ali vai… —, isto é pouco, e aliás contraditório.
Os blogues persistem um espaço selvagem, quase sem regras, ou melhor, escapando à maior parte das regras e constrangimentos que estruturam o espaço público. Isso é basicamente positivo, sendo em consequência negativo adoptar como princípio de conduta a ideia vulgar de que muita gente não merece, por não saber usá-la, a liberdade que lhe dão. Fica a coisa muito unilateral, percebem? Dir-se-ia que o bloguista dispõe de algum poder sobre os outros, mostrando-se generoso — se abre caixa de comentários — ou revelando-se arrogante — se a fecha ou nunca a abriu. Daí que os blogues que fecham ou restringem a caixa de comentários o façam sempre estribados no uso peculiar que a amálgama de comentadores lhe foi dando — e daí que nunca interroguem aquilo mesmo que os levou a abri-la de início.
A caixa de comentários responde a dois desejos que não devem ser encorajados: o dos comentadores, claro, mas também o dos comentados. Da parte destes, a abertura ao comentário deriva do desejo de obter reacção imediata ao que se escreveu. Desejo apenas tolerável como ansiedade de principiante, porque incompatível com a escrita. Se há alguma determinação moral da escrita, define-se com uma única figura: a ingratidão. O escrito não regressa a quem o escreveu — nunca. O escrito entrega-se, dá-se, voga por aí: e precisa de tempo, às vezes muito tempo, para que alguém o reconheça e lhe responda. O blogue, nisso, não difere. Pelo contrário, agrava a ingratidão, porque o post, mínimo ou máximo, nunca regressa a quem o escreveu para o informar de que foi lido por cem ou duzentas pessoas: se for lido, se for acarinhado, execrado ou adorado, guarda tudo com ele, porque necessariamente se esquece de quem lhe deu forma. O bloguista, esse, que se contente com ecos, sussurros, uma palavra aqui ou ali: se chegarem, ainda bem, se não chegarem, não lhe compete ir à procura. É assim mesmo, e de nada adianta imaginar que a técnica oferece antídoto eficaz para esta ingratidão.
Da parte do comentador, o desejo de comentário é o desejo de se exprimir facilmente, sem custos — de borla. O blogue alimenta essa ilusão de que qualquer um pode escrever e qualquer um tem coisas para dizer. A pequena-burguesia muito expressiva, portanto. Como, porém, nem todos alcançam a forma da escrita; como, porém, nem todos chegam à iniciativa de, por si mesmos, abrirem o seu espaço próprio de escrita; como nem todos, porém, sabem escrever — a caixa de comentários permite-lhes escrever sem pudor nem gramática; permite-lhes dizer de facto qualquer coisa; permite-lhes exprimirem-se, e sempre à custa da iniciativa, da prosa e da forma dos outros. Por isso os comentários redundam em frustração para o comentado: porque não visam dar-lhe nem lhe dão essa resposta imediata que ele deseja, antes estruturalmente oferecem ao comentador a possibilidade de participar na avalanche da escrita sem chegar a escrever. Não admira assim, dado esse entendimento prévio de ansiosos e parasitas, que a caixa de comentários chegue a ser considerada um direito natural, inalienável, quase constitucional, dos leitores de blogues. Na verdade, está bem longe disso: a caixa de comentários é o parasita dos blogues.

* © Fernanda M. B.