16 junho 2005

O funeral

- Viu na TV as imagens do funeral de Álvaro Cunhal, Groucho?
- Vi sim, Sr.
- E que me diz àquilo? Eu fiquei impressionadíssimo.
- Também eu. E acho que era mesmo isso que Cunhal desejava.
- O que quer dizer?
- Ao que li, ele desejou que o seu funeral fosse uma ocasião de reunião de camaradas de todo o país. E de facto foi isso que sucedeu, com um grau de mobilização de todo inusual nestes tempos. Mas, com franqueza, devo dizer-lhe que acredito que o próprio Cunhal não duvidou por um instante de que esta mobilização ocorresse – e daí esse «pedido» final.
- Uma última celebração de Cunhal e do partido que moldou?
- A última depois da última, já agora. Se aquilo é um partido morto, ou póstumo, é caso para dizer que é um morto mais vivo do que muitos recém-nascidos (o BE, por exemplo). Uma comunista dizia na TV, emocionada, que vinha homenagear «Um homem que muito lutou!». E em seguida, após uma pausa: «E muito venceu! Muito venceu!». Desconfio que ela tem mais razão do que os comentadores da praxe. Sem entrar em balanços, parece-me evidente que Cunhal venceu duas batalhas derradeiras no seu funeral. A primeira, especialmente sentida, contra Mário Soares. Não acredito que o funeral de Soares venha a mobilizar 250 000 pessoas, e por uma razão simples: a relação de Soares com os seus eleitores e seguidores é muito menos orgânica do que a de Cunhal com o seu povo – o povo que se foi despedir do «camarada Álvaro». O funeral de uma figura como Soares (entenda-me: não estou a querer enterrá-lo, mas a fazer prospectiva…) mobilizará todo o Estado, e a comunidade internacional, mas poderá ser acompanhado tranquilamente pela TV. Não assim o de um líder comunista histórico, desde logo porque o comunismo nunca poderá ter uma tradução institucional plena, sob pena de auto-traição. A segunda vitória, contra os «críticos» e os que andam há duas décadas a decretar o passamento do PCP. Cunhal foi capaz, depois de morto, de fazer o PCP descer à rua e mostrar a sua força, como nunca ocorrera desde 1974.
- Não faltará quem venha dizer que isto é mais um sinal do anacronismo do tecido social português, Groucho: o país tem o Partido Comunista que mais nenhum país da Europa tem, em dimensão e conservadorismo, porque não consegue livrar-se do lastro de exclusão e miséria de que se alimenta o PCP.
- Tretas, se me permite. Ou melhor, truísmos e tretas. Já reparou que essa argumentação serve para objectos como o PCP mas não serve para outros como o PSD, que é também um produto orgânico do país que somos, ou como os movimentos neo-fascistas ou neo-nazis, que não temos, felizmente? Não se trata de atraso, ou não se trata de atraso em grau superior ao ocorrido noutros países, mas sim de especificidades históricas e culturais, em sentido lato. Aliás, essa ideia de que tudo o que nos diferencia dos outros é atraso, foi chão que há muito deu uvas (leia-se o último António José Saraiva ou Boaventura Sousa Santos). Ou seremos atrasados por termos este PCP e já seremos avançados por os movimentos neo-fascistas, ao contrário do ocorrido em Itália ou na Áustria (ou mesmo na França de Le Pen), não pegarem por cá, apesar da semente de 48 anos? Fique-se com esta, Sr.: aquilo não foi só um funeral mas uma demonstração de força encenada por um morto. Da força de uma ideologia e uma cultura assente numa ética de intransigente fidelidade a uma memória. Pode-se não gostar ou gostar pouco, mas não se pode fazer de conta que não existe.
- Francamente, depois de o ouvir não sei se vá ler umas páginas do Hamlet ou antes do Rumo à Vitória…