O Ferrari e o Fiat 600
- Acabo de dar uma espreitadela ao noticiário na TV e estou chocado, senhor.
- Então, Groucho? O Sócrates decidiu tirar-nos o subsídio de férias?
- Tão paroquial, senhor, tão paroquial… Não, coisas mais vastas, coisas do Vaticano. Lembra-se de que quando o Papa Bento XVI foi ordenado logo um coro de vozes acorreu a dizer que o devíamos olhar sem os preconceitos resultantes da sua actuação anterior no domínio da Doutrina e da Fé? Que ele nos iria surpreender?
- Como poderia eu esquecer essa cantata para violino e anjos, Groucho?
- Pois olhe, acabo de constatar que era verdade. E nós, ou pelo menos eu, que o encarei com reserva mental, estava errado.
- Essa agora! Explique-se, homem!
- Então, é isto: lembra-se da homilia do ainda Cardeal Ratzinger contra a «ditadura do relativismo», que aliás já aqui discutimos?
- Pergunta retórica, Groucho…
- Pois, imagine que vi hoje o Papa Bento XVI, que de facto já nada parece ter a ver com Ratzinger, a benzer, na Praça de S. Pedro, uma troupe de Ferraris!! Uma troupe de nome Easy Rider, nome que ele mesmo mencionou!
- Easy Rider? Mas é quase impossível que um grupo ferrarístico com esse nome não meta droga com força… E sexo no banco de trás, bem entendido. Aliás, o banco de trás de um Ferrari deve ser repleto de possibilidades, não acha Groucho?
- Lamento, senhor, mas não o posso esclarecer nesse domínio.
- Sempre racionalista, Groucho, sempre racionalista…
- Assumo, senhor. Daí, aliás, a minha perplexidade, por ver a pessoa que pregou contra a ditadura do relativismo abençoar Ferraris, esse ícone de uma sociedade que confunde o belo e o bem com o cifrão, neste caso motorizado.
- Mas Groucho, sabe lá se o Papa quis apenas dar um sinal do seu empenho no mundo contemporâneo, escolhendo para isso um dos seus signos maiores: o automóvel?
- Admitamos, Senhor. Mas então, em sã doutrina cristã, que escolhesse um outro veículo, mais compaginável com a mensagem de Jesus. Sei lá… Um grupo de Fiats 600, por exemplo.
- Fiats 600, Groucho?! Já viu o tormento daquele banco traseiro?
- Comentário inteiramente impróprio, por blasfemo, senhor. Repare que do ponto de vista da Igreja, sempre tão empenhada na preservação da família tradicional e no combate ao preservativo, o Fiat 600 é toda uma encíclica.
- Suspeito que agora foi o Groucho quem incorreu em blasfémia.
- Longe disso, senhor. Apelo às suas luzes de sociologia e demografia. Se houve período em que a população italiana, e a europeia, já agora, cresceu, foi o do pós-guerra, como sabe. E que automóvel pode funcionar como emblema desse período em Itália, senão o Fiat 600? Creio que as dimensões do banco traseiro não foram impeditivas nem de actividades extra-curriculares nem da existência de famílias numerosas... Logo, substituir o Fiat 600 pelo Ferrari, numa cerimónia como a que hoje teve lugar na Praça de S. Pedro, é um erro crasso, que só pode relevar da amnésia sociológica que pelos vistos afecta também hoje o Vaticano.
- Estou sem palavras com a sua capacidade de encadear a sociologia e a demografia na fé e no parque automóvel. Olhe, e se víssemos de novo o vídeo da corrida do Tiago Monteiro?
- Tamos nessa, senhor.
<< Home