A nossa maior poetisa
- Sabe que uma das coisas que nos fica de Eugénio de Andrade é uma indiscrição?
Groucho olha-me interrogativamente, de pé atrás, como quem vasculha a Obra Completa do poeta à velocidade de um super-processador.
- Como assim?
- Refiro-me àquela indiscrição contida no texto «Imagem de Pascoaes», de Os Afluentes do Silêncio, sobre António Nobre. Um Eugénio ainda jovem pergunta a um Pascoaes longevo se «gosta muito» de Nobre, ao que ele responde: «-Claro que gosto! “É a nossa maior poetisa”». Eugénio reage rindo e a conversa muda para os modernistas Sá-Carneiro e Pessoa.
- Não me lembro dessa, confesso.
- Não me diga que o apanhei descalço, Groucho. E logo in re António Nobre, um dos seus poetas de cabeceira! Caramba, é caso para celebrar!
- Permita que me junte à festa, senhor. Celebraremos as imperfeições humanas, neste clube reservadas todas, e em exclusivo, à minha pessoa…
- Bem diz o Sr. Baptista que na sua pessoa a comédia da humildade é a outra face da impertinência! Mas adiante. A questão estimulante aqui, suponho, é tentar perceber o que quereria dizer Pascoaes com aquele retorcido elogio. Tanto mais que não há dúvida de que de elogio se trata. A pergunta de Eugénio, aliás, denuncia o conhecimento prévio dessa paixão de Pascoaes por Nobre, na medida em que participa da petição de princípio: Eugénio não pergunta a Pascoaes se gosta de Nobre mas sim se «gosta muito».
- Logo, se bem o acompanho, senhor, Pascoaes não teria a intenção de diminuir Nobre dizendo-o «a nossa maior poetisa», não é?
- É o que a pragmática da cena parece sugerir, de facto. E daí… O elogio, sejamos justos, não pode deixar de ter água no bico, já que Nobre foi e é poeta e não poetisa e, ao que julgo saber, Pascoaes não integrava os desfiles do Gay Pride, ainda que na condição eventual de simpatizante... Dizê-lo «a nossa maior poetisa» é mais ou menos o mesmo que dizê-lo «o maior da rua dele». Talvez a coisa comece a esclarecer-se se aplicarmos a frase, a bem do exemplo, a Sophia. Seria menos chocante, já que a discrepância sexo/género desaparece, mas manter-se-ia o elogio restritivo: Sophia seria «a maior» do clube do tricot. O que é tranquilizador para os poetas-homens, que assim podem jogar para a Superliga apenas entre eles. Por outro lado, o elogio possui uma estrutura frásica e retórica curiosa: primeiro, o assentimento enfático («Claro que gosto!»), depois a ressalva. A certeza do elogio sofre uma reviravolta no fim da estrada, e por isso quase imperceptível.
- Algo de muito próximo retórica da antífrase, não acha? Uma forma de ironia não tão dependente do contexto e limitada a uma palavra. Neste caso, «poetisa».
- Mais ou menos isso, sim. Ainda assim, repare que este elogio restritivo não é idêntico a elogios como o que George Best fez há uns anos a Beckham. Lembra-se?
- Como não, senhor? «O melhor extremo-direito do mundo? Bom, se descontarmos o facto de ele ser incapaz de driblar um adversário ou de meter uma mudança de velocidade, sim, é o melhor do mundo…».
- Exacto. Isso é um elogio assassino, e não é obviamente isso que está em pauta com Pascoaes.
- Mas Pascoaes tem razão, não? Quero dizer, agora que me refere esta frase, sempre me pareceu que em Nobre era muito sensível uma incoincidência entre sexo e género, aliás de consequências muito produtivas para a sua poesia (talvez pudéssemos ler por aí os «inhos» da sua poesia…). E repare que nem falo de coisas como aquela carta a Alberto de Oliveira, aquando da primeira ida a Paris, em que Nobre refere a «pilinha-morango» de Alberto... Não sei se Pascoaes conheceria histórias de Nobre e do seu afectado dandismo (o meio literário do fim-de-século abundava nelas) e duvido mesmo que fosse isso que ele tivesse em mente. Por mim, enquanto criatura pós-formalista (e até para mostrar que um «pós» só para os tontos é uma recusa ou negação), prefiro neste caso ater-me ao texto. A frase torna-se aliás mais estimulante se lida em clave textual, não concorda, senhor?
- Com que então o Groucho é um pós-formalista?! Grandes revelações... Bom, a resposta é: sim e não. Porque repare que a frase produz um estranho efeito queer sobre Nobre: transforma-o, digamos, num travesti. E, ao fazê-lo, introduz a questão aparentemente mais emancipatória, mas de facto mais limitativa, das críticas da identidade: a relação expressiva entre sujeito e texto. Ou, noutros termos: uma concepção demasiado expressivista da criação. Logo, ao dizer Nobre «a nossa maior poetisa» Pascoaes supõe que a «poetisa», enquanto manifestação textual, decorre, de alguma maneira, disso que seria a «poetisa» no sujeito Nobre: uma qualquer discrepância entre sexo e género. Quer se admita que o texto travestiria o sujeito, quer se admita que o sujeito é já travesti, não vejo como colocar a questão do sujeito entre parêntesis. Sugerir, no modelo binário tradicional, que o sexo é pertença do sujeito e o género criação do texto, parece-me, isso sim, uma traição a Pascoaes, já que o sujeito, na melhor das hipóteses, aparece na frase dele já travestido. Nobre é uma Purinha, digamos, se lermos no diminutivo aquela excesso afectivo que histeriza, e fractura, o sujeito e dele faz poetisa: uma entidade em que o sexo se desmultiplica, incoincidindo com o género no regime suplementado de um «terceiro sexo». É isso o travesti, suponho.
- Complicadito, não, senhor?
- Talvez. Mas olhe, o Sr. Baptista chama-o e não quero privar os meus amigos dos seus serviços. Melhor será continuarmos a nossa conversa depois, se ainda tivermos pachorra.
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