Laços de família
Cabisbaixou-se:
— Não apurei muito, senhor. Parece que o caso foi o Manuel Maria Carrilho ter aparecido com a família em qualquer lado...
— Em qualquer lado? Já anda pelos bairros a palpar o povo, é?
— Não propriamente, senhor. Mais resguardado, numa cerimónia; apresentou um vídeo, e no vídeo estava a família, a mulher, o filho pequeno e outros parentes. Lançamento da candidatura, ou semelhante.
— O filho pequeno?! Acho isso abominável, Groucho, expor filhos pequenos na esfera pública...
— E a mulher não, senhor?
— A mulher pode decidir por si, em princípio tem autonomia moral para se associar ao que bem entender. Vai ali o miúdo equiparado à mãe, nessas figuras de família, não podendo ter decidido como se presume que a mãe decidiu. Se eu fosse filho do Manuel Maria Carrilho…
— Creio que dessa sorte já ficou livre, senhor.
— Sim, parece que sim; seja como for, não gostaria de me ver associado à candidatura dele sem que pelo menos me perguntassem se estava disposto a apoiá-lo.
— Mas o rapaz é muito pequeno, senhor.
— Precisamente! Os pais têm o dever de representar os filhos, mas representá-los enquanto pessoas que são e hão-de ser, o que os autoriza a decisões que os filhos não podem tomar e de que a vida deles, presente e por vir, depende; já não têm o direito de os usarem como meras extensões das suas pessoas associando-os a actos e escolhas que em absoluto não lhes dizem respeito.
— Prado Coelho explicou que os políticos aparecem sempre com as famílias e até realçou que nas eleições americanas o cão é uma personagem importante.
— A comparação não lisonjeia o pequeno Dinis Maria, Groucho.
— Será antes a sua leitura, senhor, nada generosa.
— Pelo contrário, até lhe ofereço já uma interpretação generosa do episódio, aliás duas, se bem que a segunda talvez nem tanto. Se tem paciência para ouvir…
— Não me cabe circunscrever os limites da minha paciência, senhor.
— Bem observado. Pois então, ouça. Aquilo não resulta senão de férrea confiança na vitória. Carrilho não duvida de que ganhará. Por outro lado, sabe que a Câmara Municipal de Lisboa é mais exigente que um ensaio de Rorty. De resto, os políticos não têm tempo para nada, perdem amigos, deixam de jantar e negligenciam a família. Pois bem, o nosso candidato, assim certo de vencer, resolveu partilhar com o povo esse derradeiro momento no seio da tranquilidade familiar, constituindo-o marco simbólico do seu sacrifício em nome do município…
— Se essa é a interpretação generosa, não sei se fique para ouvir a outra.
— Espere, não acabei. A interpretação generosa é a que lê no retrato de família estas frases brandas: «Vejam a bela família que eu tenho, vejam como me disponho a descurá-la e como ela, abnegada, concede, quase feliz, por saber que é para o bem do município, quiçá do país.» A outra interpretação pressente um pedido de ajuda, um apelo angustiado, um grito…
— Um grito, senhor?! Que grito…?
— «Tirem-me daqui!»
— Não apurei muito, senhor. Parece que o caso foi o Manuel Maria Carrilho ter aparecido com a família em qualquer lado...
— Em qualquer lado? Já anda pelos bairros a palpar o povo, é?
— Não propriamente, senhor. Mais resguardado, numa cerimónia; apresentou um vídeo, e no vídeo estava a família, a mulher, o filho pequeno e outros parentes. Lançamento da candidatura, ou semelhante.
— O filho pequeno?! Acho isso abominável, Groucho, expor filhos pequenos na esfera pública...
— E a mulher não, senhor?
— A mulher pode decidir por si, em princípio tem autonomia moral para se associar ao que bem entender. Vai ali o miúdo equiparado à mãe, nessas figuras de família, não podendo ter decidido como se presume que a mãe decidiu. Se eu fosse filho do Manuel Maria Carrilho…
— Creio que dessa sorte já ficou livre, senhor.
— Sim, parece que sim; seja como for, não gostaria de me ver associado à candidatura dele sem que pelo menos me perguntassem se estava disposto a apoiá-lo.
— Mas o rapaz é muito pequeno, senhor.
— Precisamente! Os pais têm o dever de representar os filhos, mas representá-los enquanto pessoas que são e hão-de ser, o que os autoriza a decisões que os filhos não podem tomar e de que a vida deles, presente e por vir, depende; já não têm o direito de os usarem como meras extensões das suas pessoas associando-os a actos e escolhas que em absoluto não lhes dizem respeito.
— Prado Coelho explicou que os políticos aparecem sempre com as famílias e até realçou que nas eleições americanas o cão é uma personagem importante.
— A comparação não lisonjeia o pequeno Dinis Maria, Groucho.
— Será antes a sua leitura, senhor, nada generosa.
— Pelo contrário, até lhe ofereço já uma interpretação generosa do episódio, aliás duas, se bem que a segunda talvez nem tanto. Se tem paciência para ouvir…
— Não me cabe circunscrever os limites da minha paciência, senhor.
— Bem observado. Pois então, ouça. Aquilo não resulta senão de férrea confiança na vitória. Carrilho não duvida de que ganhará. Por outro lado, sabe que a Câmara Municipal de Lisboa é mais exigente que um ensaio de Rorty. De resto, os políticos não têm tempo para nada, perdem amigos, deixam de jantar e negligenciam a família. Pois bem, o nosso candidato, assim certo de vencer, resolveu partilhar com o povo esse derradeiro momento no seio da tranquilidade familiar, constituindo-o marco simbólico do seu sacrifício em nome do município…
— Se essa é a interpretação generosa, não sei se fique para ouvir a outra.
— Espere, não acabei. A interpretação generosa é a que lê no retrato de família estas frases brandas: «Vejam a bela família que eu tenho, vejam como me disponho a descurá-la e como ela, abnegada, concede, quase feliz, por saber que é para o bem do município, quiçá do país.» A outra interpretação pressente um pedido de ajuda, um apelo angustiado, um grito…
— Um grito, senhor?! Que grito…?
— «Tirem-me daqui!»
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