Gramática e serviços mínimos
- Leu por acaso o editorial de José Manuel Fernandes no Público de terça-feira, 21?
- Seguramente que não, Groucho.
- E porquê?
- Porque mesmo quando compro o Público, tendo a dispensar o cantinho do pregador. Doutrina por doutrina, antes a do Padre Vieira.
- Pois olhe, é pena.
- E porquê?
- Porque o texto, que é uma flagelação violenta na greve dos professores, merece leitura. Chama-se «Fiasco sindical», título que se percebe dar um certo gozo ao autor, e queria ler-lhe uma frase.
- Se tem mesmo de ser…
- Tem mesmo. Aqui vai: «Face a uma situação de grave crise nas finanças públicas, nenhum Governo poderia deixar de olhar para estes números [ele refere-se à despesa nacional em educação] e concluir que o sistema em vigor paga demasiado bem a professores que têm poucos alunos e que lhes ensinam mal».
- Chocante, Groucho!
- Direi mesmo mais, senhor: chocante! Pois admite-se que um ex-aluno do Liceu Camões assim troque o transitivo directo – que lá devia estar: «e que os ensinam mal» - pelo indirecto: «e que lhes ensinam mal»? Aonde irá isto parar?
- Já viu se ele tinha de fazer o exame de português do 9º ano?
- Eu sou mais generoso, senhor, e concedo-lhe antes o do 12º. Se bem que não fosse má ideia exigir-lhe o do 9º, já que o jornal dele é um dos que mais se tem destacado na defesa desses exames inúteis e massacrantes, para mais num ano lectivo iniciado tarde e a más horas. Como sabe, na tão decantada e glosada Finlândia não há exames no final do Básico, pois entende-se, com razão, que a exigência passa antes por outras práticas pedagógicas e didácticas. No Público, pelo contrário, e apesar das reportagens insistentes sobre «o modelo finlandês», acha-se que o ideal seria um sistema de exames anuais, de modo a combater o «facilitismo». Ou seja, a ideia, para citar a incontornável Filomena Mónica, de que na escola de hoje tudo é feito para que «os meninos», como ela diz pitorescamente, se divirtam e não, como deveria ser, para que trabalhem. Ultimamente, o Público recrutou mesmo uma outra súbita especialista em questões de ensino não-superior, Maria de Fátima Bonifácio…
- Notável historiadora, Groucho.
- …sem dúvida, mas que na matéria em pauta advoga que todos os problemas se resolvem por uma mesma poção: exames! A evidência empírica acumulada, cá e lá fora, que demonstra que os exames são um pobre instrumento de aferição da qualidade de um sistema educativo, é o menos. Devo dizer-lhe aliás que não percebo por que cargas de água o anterior governo se lembrou de reintroduzir esta coisa dos exames do 9º ano – e por que razão o Sócrates não teve coragem de os extinguir.
- Ora, Groucho, por uma única razão, em ambos os casos: para se furtarem, um e outro, à ira opinativa das pessoas que referiu, e ainda de António Barreto, da formidável Helena Matos, etc.
- Pois, mas já viu a má-consciência do sistema (já pareço o Dias da Cunha…)? Fazem-se exames, mas como de facto ninguém acredita na sua função no final do Básico, o nível de exigência é nenhum. No caso da prova de Português, então, santos deuses… No final da história, José Manuel Fernandes, Filomena Mónica, Fátima Bonifácio, António Barreto, e a vasta tropa de seguidores desta versão nacional do politicamente correcto em educação, ficam muito contentes porque houve exames. Só que, sendo o grau de exigência o que é, as provas nada significam, ou não têm mais significado do que as provas que os professores periodicamente realizam nas salas de aula. Mas sabe que as coisas chocantes no texto de JMF não ficam por aqui…
- Não me diga que há mais?
- Et comment, senhor! A citação é grande, mas chamo a sua atenção para o desleixo no uso do infinitivo impessoal, as mais das vezes substituído pelo pessoal: «Só isso explica que, quando nem sequer se iniciou a discussão das inevitáveis alterações à carreira docente e ao regime remuneratório, tenham optado pela mais cruel chantagem: marcarem greve para uma época de exames. Isto é, tomarem os alunos por reféns e procurarem, por todos os meios, provocar uma trapalhada que crie desigualdades de avaliação num sistema desenhado para tratar todos por igual».
- Estou cada vez mais chocado, Groucho…
- Pois, e reparou naquele «que crie desigualdades» em vez de «que criasse desigualdades», como deveria ser, por razões de coerência de tempo verbal? Uma vez que a frase em causa depende, lógica e temporalmente, do verbo da frase anterior – o perfeito composto do conjuntivo, «tenham optado» -, a lógica implícita da frase é «tenham optado por tomar os alunos por reféns e procurado provocar uma trapalhada que criasse desigualdades, etc.». Nunca o presente e sim o imperfeito do conjuntivo.
- Elementar, meu caro Groucho.
- Isto para não falar na imprecisão de concordância de sujeito e predicado duma frase como esta, quase no fim: «Para os alunos e para as suas famílias, submetidas à tensão inerente a uma época de exames, acrescentar-lhes a incerteza de realizarem ou não a prova no dia marcado raia o sadismo». Aquele «realizarem ou não», em concordância com «alunos e famílias», dá a ideia de que pais, irmãos, avó, avô, tios, primos, quiçá o gato, o cão e o canário, enfim, toda essa gente e bicharada, foi fazer a prova juntamente com os alunos. Imagine como as salas não terão ficado sobrelotadas, senhor…
- De facto, o editorial não cumpre os serviços mínimos em matéria gramatical, Groucho. Coisa que até a mim, que estou longe de ser admirador de José Manuel Fernandes, me surpreende, devo confessar.
- Foi a excitação, senhor. A gramática é criatura cartesiana, exige ponderação, e o director do Público estava manifestamente excitado quando escreveu o editorial.
- Não se esqueça de que Descartes estava errado…
- O que não implica que JMF esteja certo…
- Estarão os dois errados, então?
- Falta aqui um examezinho básico para resolver a pendência, senhor.
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