17 junho 2005

Droláticos e pilheriáticos*

(À atenção do Luís Quintais)

Ao fim de laboriosas pesquisas, inquéritos, mesas-redondas, simpósios e análises em laboratórios de psicologia, descobriu-se que os motoristas guiavam com ódio. Agora que isto ficou esclarecido, a solução, fácil e independente do Código Nacional de Trânsito, que por ser código não costuma ser cumprido, está na frase: GUIE SEM ÓDIO. […] Diversos motoristas […] cogitam de substituir o ódio, que está proibido, por sucedâneos mais ou menos eficazes, e verificam as propriedades estimulantes do rancor (esse ódio de segunda categoria), da aversão, da raiva, da antipatia generalizada. […] Fui procurado ontem por uma comissão barbuda da Sociedade Lebloniana dos Amigos da Vida, que me pediu veiculasse a ideia de outra tabuleta, no lugar da que fala em ódio: GUIE COM AMOR, BICHO.
— O senhor está pinel? — respondeu-me o funcionário a quem fui, de galope, transmitir a sugestão. — Guiar com amor é o que há de mais mortífero. Guiar com amor é subir ao astral, esquecer os reflexos, entregar-se à melodia interior. Olhe o caso dos namorados que beijam suas namoradas (ou vice-versa) com a mão no volante, quando não fazem coisa mais quente. O amor é ainda mais perigoso que o ódio, me admira que o senhor não saiba.
[…]
Mas tudo pega um momento, mesmo que seja slogan discutível. Ouvi dizer que a Companhia Telefónica pensa em lançar uma variante, dirigida aos usuários que tiverem suas contas aumentadas com impulsos fantasmas: PAGUE SEM ÓDIO.
O filme não presta, a peça é indigerível? Assista sem ódio. Bife de pedra, no restaurante? Coma sem ódio. O livro é chatíssimo? Leia sem ódio. O conferencista dá sono? Durma sem ódio. Se tiver de brigar, brigue sem ódio. Se possível. Se de todo for impossível, odeie sem ódio, tá?

Carlos Drummond de Andrade, Os Dias Lindos (1977)

* De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 344a.