Dois escritores (II)
- Já lhe falei do meu amigo Manuel Resende, Groucho?
- Sim, claro. Poeta que o Sr. Silvestre muito admira, tradutor de Elytis e outros gregos modernos…
- … tem para lá uma vasta antologia de poesia grega moderna que ninguém parece querer editar…
- … do Coriolano de Shakespeare e, mais recentemente, do Watt, de Beckett. Gosta de coisas difíceis, pelos vistos.
- É. E não esqueça aquela que é talvez a maior proeza dele, A Caça ao Snark, do Carroll. Pois bem, o Manuel, com quem discuti algumas das suas teses sobre Cunhal como comunista escritor, levantou algumas objecções que gostaria de lhe transmitir.
- Sinto-me honrado pela interlocução, Sr.
- A bem dizer, antes das objecções uma achega do Manuel. Dizia-me ele que ainda ontem, em virtude da cobertura televisiva das exéquias de Cunhal, viu um antigo e velho operário do PCP a explicar como actuavam nas sociedades recreativas e não só. Emprestavam livros aos operários (A mãe, do Gorki, Os Miseráveis, o Germinal, os livros de Soeiro Pereira Gomes, etc.) e depois discutiam com eles esses livros. E quando viam que a coisa pegava, começavam a integrá-los em actividades mais politicas... Nessas condições, é claro que o respeito pelo valor sagrado do livro ou da literatura (até mesmo como instrumento) era indiscutível, não? E não será isso que explica porque Cunhal tenha querido ele próprio escrever os seus livros (literários, entenda-se)?
- Sem dúvida. Do CV do bom líder comunista tinham de fazer parte alguns livros publicados, e se fossem obras literárias, melhor (convém pensar, já agora, não apenas no caso europeu mas asiático e também africano: Mao e Agostinho Neto, obviamente, mas não apenas). Em todo o caso, a pedagogia pela literatura, ou a literatura qua pedagogia – e esse qua é o problema central do que se veio a chamar muito imperfeitamente neo-realismo, entre nós – é parte decisiva do comunismo enquanto «educação da classe operária». Deixe-me relembrar aquele texto de Óscar Lopes nos 50 anos da publicação de Gaibéus, em que ele conta como participou em sessões de leitura colectiva da obra, na zona de Vila Franca, e como essas sessões eram simultaneamente pedagogia, comunismo e, obviamente, literatura (proletária). E sabe-se como o PCP prezava o uso de Zola para essas funções.
- Vejo que se adiantou à objecção do Manuel. É que ele chama a atenção para a necessidade de contrapor a questão da escrita ao que poderia chamar a materialidade da palavra em geral: o partido, as reuniões clandestinas, os debates de vários dias que mesmo no PCP precediam e acompanhavam a escrita. Assim, mesmo na clandestinidade, não havia só grafomania, havia também lalomania.
- Sem querer parecer pretensioso, não vejo que haja contradição mas sim complementaridade entre as minhas palavras e as do Sr. Resende. Repare que nesse texto que referi, quando Óscar Lopes reconstitui aquilo que é no fundo a cena primitiva da recepção da literatura proletária, ele não pode deixar de notar a sua mais importante contradição performativa: o facto de se tratar de literatura escrita para quem não sabe ler. Assim, em virtude desse mesmo condicionamento material – que nos mostra a que ponto literatura e literacia são coisas interdependentes, para não dizer que são duas faces da mesma coisa – o texto de Gaibéus é lido em voz alta numa roda de pessoas que vão «passando palavra». Para logo em seguida «enxertarem palavras» no que leram, por meio de actividades latamente definíveis como de «tradução» experiencial e política. É toda a lógica do suplemento, não acha? Uma literatura que necessita de ser suplementada pela voz para realizar todas as potencialidades da letra. Ou seja, a grafomania, enquanto condição prévia do comunismo – ideologia que nasce e tem de se confrontar com a grafomania do espaço público burguês – tem de conviver com a iliteracia dos seus naturais destinatários. Mas repare que é esta situação que permite definir o comunista como um membro de uma vanguarda histórica: alguém que escreve e lê para os outros (chame-se Cunhal, Redol ou Óscar Lopes). E é aqui que o comunismo integra ainda a grande narrativa da pedagogia iluminista e moderna, na medida em que «derrama as luzes» pelas massas, como se dizia nos inícios de Oitocentos.
- Não o sabia tão empenhado na questão da literatura proletária, Groucho… Mas, e quanto à última objecção do Manuel, que chama a atenção para o facto de que o Livro, ao contrário do sucedido hoje, era o único suporte da memória generalizadamente acessível? Note-se aliás que pela sua própria forma de produção, o livro era qualquer coisa de definitivo e sagrado: uma vez impresso (operação morosa), só dificilmente se podia mudar. Isso reforça a questão da materialidade da comunicação que envolve grafomania, escritor e livro, impressão e tipógrafos, ou não?
- Sem dúvida, mas não me parece que conteste o essencial do meu ponto sobre o comunismo como grafomania: pelo contrário, reforça-o. Daí a importância de usar bem os escassos meios tecnológicos e o reduzido número de textos impressos; daí a urgência em assegurar o salvamento da máquina de impressão em situações críticas. Mas também daí, repare, a grande dificuldade para alargar o número de leitores, sobretudo em situação de clandestinidade. No fundo, a letra impressa como veículo de comunicação, numa situação histórica em que os seus suportes são ainda fortemente «materiais» - o jornal, o livro, a máquina de impressão – e em que o púbico é largamente iletrado, tanto facilita como dificulta (e, na clandestinidade, dificulta-o enormemente) o propósito último deste circuito comunicativo: a sublevação das massas. Tudo parece ficar confinado, e condenado, a um circuito em auto-alimentação e a uma economia de subsistência (convirá ler, para perceber tudo isto, o Até amanhã, camaradas). Por outro lado, e isto já vai um tanto à revelia do que afirma o Sr. Resende, quando um partido comunista toma o poder pode-se assistir a um fenómeno simultaneamente de sacralização e banalização do livro. Suponho que é tipicamente o caso da função do Livro Vermelho do camarada Mao na Revolução Cultural chinesa: é uma Bíblia portátil, um paperback, digamos. Mas é ainda uma Bíblia, com uma férrea política de controlo da interpretação. Nesse sentido, julgo que a cena primitiva da literatura proletária reconstituída por Óscar Lopes a propósito de Gaibéus é mais livre do que a chinesa na medida em que clandestinidade e iliteracia, apesar da presença tutelar do «intelectual comunista», põem por definição em causa uma pedagogia estabelecida à revelia da experiência concreta daqueles leitores-ouvintes. Mas isso levanta outra questão que seria interessante estudar: a forma como a grafomania comunista se integra no programa iluminista de repressão da voz, negando a possibilidade de «cultura» ao iletrado. Como dizia António José Saraiva, um comunista ortodoxo e heterodoxo, a propósito da Idade Média, convém não esquecer que existe também uma cultura do analfabeto. Creio que no âmago do projecto comunista há um conflito nunca resolvido entre grafomania e tentativas de recuperação da espontaneidade «popular», e «proletária», da voz, que o comunismo também tentou, revalorizando essa cultura e pluralizando a cultura nacional em culturas: de classe, região, etc. Mas isto levava-nos longe e o Sr. quer ver a Quadratura do Círculo, não é?
- Acho que já acabou. Fico-me antes por essa quadratura que o Groucho acabou de enunciar. Traga-me um chá, se não se importa, para eu a ir ruminando.
- É para já, Sr.
<< Home