16 junho 2005

Convicções estabilizadas

Trazia cara de nenhum amigo.
— Caramba, Groucho, que trombas! Alguém lhe fez mal?
— Releve-me a catadura, senhor. Há motivo. Se me tolera uma nota pessoal, um homem tem o direito de se sentir ofendido quando ouve desdenhar das suas convicções estabilizadas.
— Convicções estabilizadas? Isso excita-me a curiosidade, conte lá, homem.
— Foi-me impossível não ouvir o que disse há pouco o Sr. Serra a propósito do vegetarianismo. Acho que me abespinhei. E depois, como direi… fiquei envergonhado, senti-me como que abaixo de mim.
— Ora, deixe lá, aquilo era uma história, se calhar inventada, uma facécia, como você mesmo diria. Não ofende nem defende. Mas, espere lá! você é vegetariano?!
— Mais precisamente vegano, senhor.
— Nossa, isto promete. Não fazia ideia… a verdade é que nunca o vi comer nada de nada. Mas vegano? nem queijo nem ovos?
— Não, não como animais nem nada que provenha de animais. Fiquei assim depois de ler um romance, que me foi aliás recomendado pelo Sr. Silvestre: Elizabeth Costello, de J. M. Coetzee. Acaso leu?
— Sim, li, ele também mo impingiu há uns tempos.
— Achei-o extremamente interessante e…
— … extremamente interessante? Você está-me a sair melhor do que a encomenda: além de vegano também é permeável aos bordões distintivos do cronista-mor?
— De quem?
— Do cronista-mor, do Prado Coelho, do nosso Midas da relevância: tudo o que ele toca se torna «extremamente interessante».
— Alegra-me notar que lhe excito menos a curiosidade do que o sarcasmo. Talvez seja melhor não o incomodar com o assunto.
— Não, não, desculpe, e fale-me lá das suas convicções estabilizadas.
— Se insiste, prossigo. Nesse romance, a personagem principal, a romancista australiana Elizabeth Costello, profere a certa altura uma conferência sobre os animais que me convenceu absolutamente. Fiquei a achar repugnante o ponto extremo a que o capitalismo levou essa ideia moderna de que o homem tem direito de vida e de morte sobre todas as outras formas de vida do planeta.
— Mas, Groucho, as ideias da personagem não são necessariamente as do autor…
— Não vejo o alcance dessa observação, senhor. Não leio romances para perfilhar ou rejeitar as ideias do romancista. São ideias ali apresentadas, a bem dizer sem dono, válidas por si, pela própria pertinência, pela acutilância talvez da exposição. Como quer que seja, aprofundei o assunto e tornei-me vegano. Foi há vários meses. Sinto-me bem, nunca estive tão saudável.
— Parafraseando Oscar Wilde, isso dará saúde, mas não dá beleza.
— No meu trabalho, não fica bem ser bonito, senhor. Mas mais importante do que a saúde, porque não ambiciono morrer saudável, é a opção, a escolha, a ética…
— Mas que vai você conseguir sozinho, e ainda por cima clandestino? Sim, porque tenho a certeza de que nenhum dos meus colegas sabe dessa convicção estabilizada…
— Perdoe-me, senhor, mas essa observação não o engrandece. Não estou sozinho. E posto estivesse, todo o homem, qualquer homem pode ser um ponto de resistência. Acredito nisto.
— Agora que o ouço, sabe que eu também?
— Também é vegano, senhor?
— Não, também acredito que todo o homem, qualquer homem pode ser um ponto de resistência.