12 junho 2005

Contra o relativismo, marchar marchar

- Uma pergunta para si, Groucho: O que têm em comum o Papa Bento XVI, José Manuel Fernandes, João Carlos Espada, Vasco Graça Moura e, ainda que na sua versão blasée, Pacheco Pereira?
- Humm, deixe-me pensar... Não gostarem de futebol?... Mas não sei se o papa não torcerá pelo Bayern. Os bávaros são bairristas, como é sabido.
- Lamento mas não acertou. A resposta correcta é: a idêntica comoção e fervor com que todos reagiram (Bento XVI incluído…) à denúncia – uma das últimas do seu tempo de vigência como guardião da doutrina – da «ditadura do relativismo» pelo Cardeal Ratzinger.
- Essa escapou-me, confesso.
- Tenho de admitir que a pergunta era difícil. Mas olhe, como já me falece a paciência para discutir as banalidades de base do debate sobre o relativismo (admitindo que as pessoas em causa estejam interessadas no debate – o que não me parece que fosse de todo o caso do Cardeal Ratzinger), e como não estou para aceitar a versão puramente ideológica em que toda essa gente transforma a questão, deixo à sua consideração, Groucho, este excerto de Marshall Sahlins (de Waiting for Foucault, Still, 202, p. 46):

Anti-Relativism

Cultural relativism is first and last an interpretive anthropological – that is to say, methodological – procedure. It is not the moral argument that any culture or custom is good as any other, if not better. Relativism is the simple prescription that, in order to be intelligible, other people’s practices and ideals must be placed in their own historical context, understood as positional values in the field of their own cultural relationships rather than appreciated by categorical and moral judgments of our making. Relativity is the provisional suspension of one’s own judgments in order to situate the practices at issue in the historical and cultural order that made them possible. It is in no other way a matter of advocacy.

- Sucinto e notável, indeed, Sr. E pensar que o Gananath Obeyesekere (ainda no outro dia discutia o assunto com o Sr. Quintais) acusa Sahlins de eurocentrismo e outras coisas desse estilo, na interminável polémica entre os dois sobre o capitão Cook… Mas, é boa, esta citação traz-me à memória algumas intervenções recentes de Vasco Graça Moura nos jornais.
- Ah sim, Groucho? A que se refere?
- Bom, não sei se lembra mas aqui há tempos, no DN, com a subtileza que o caracteriza, ele bradou contra uma directiva «relativista» da UNESCO sobre o tratamento do património cultural da humanidade que, na sua opinião, contribuiria para colocar no mesmo plano um qualquer ídolo em madeira da Polinésia e uma sonata de Mozart (ou Beethoven?). Como sempre, Graça Moura extrapolava, neste caso de um «procedimento metodológico», rigorosamente descritivo, da UNESCO, e a esse título inatacável (convirá lembrar que a organização em causa trata da cultura do planeta e não apenas da da Europa), para um juízo de valor supostamente implícito na dita directiva (ou seja, deslocava a questão para o terreno moral de um suposto anything goes, o que, como diz muito bem Sahlins, não é propriamente relativismo, mas confusionismo). E, claro, em reacção a isso ele erigia o juízo de valor oposto como um absoluto; por outras palavras, deslocava o descritivo para o prescritivo. O curioso é que, em depoimento ao JN sobre Camões, por ocasião do 10 de Junho, e reagindo a palavras de Boaventura Sousa Santos em que se questionava a forma como Camões reprime n’Os Lusíadas a dimensão multicultural do «encontro colonial», Graça Moura recorre ao já velho argumento segundo o qual a rejeição camoniana do Outro (islâmico, selvagem, etc.) deve ser «integrada no seu contexto histórico»… Nenhum relativista – nenhum antropólogo – o diria melhor, não acha?
- Seguramente. E já reparou, Groucho, agora que menciona a nossa epopeia, como toda a direita se aferra hoje (que não ontem, quando o imperialismo bastava como justificação...) a argumentos relativistas quando se trata de legitimar o binarismo abrupto e a rejeição a que nela Camões submete tudo o que não é ocidental? No fundo, é como se Graça Moura e todos os que o acompanham nesse argumento nos estivessem a dizer que o «universalismo» d’Os Lusíadas é função de um contexto histórico. O qual, já agora, é fortemente anti-universalista, já que não consegue conceber o universal senão dentro do círculo da fé cristã e da subsequente cultura europeia.
- Exacto. E, se me permite um enxerto, já viu o beco sem saída em que ficamos? O «universalismo» anti-universalista dos Lusíadas pode (ou melhor: tem de ser) compreendido por uma operação de contextualização, que é uma operação relativista (é favor reler Sahlins). Mas enquanto «obra universal» Os Lusíadas são, têm de ser, uma obra que transcende os seus contextos. Devo confessar que esta sempre foi a minha maior perplexidade enquanto leitor (empenhado) da epopeia.
- Perplexidade mui compreensível, Groucho. Só que aí entra em cena uma das mais poderosas magias modernas: a da Estética. A História, a Cultura, a Civilização, enfim, os Valores da obra só são compreensíveis por relativização. Mas para compensar tudo isso, a Estética resgata aquilo que na obra está para lá de todo o contexto: a Arte dos Lusíadas, para usar uma expressão cara a António José Saraiva.
- Pois, mas aí há um outro problema, creio, e que nos leva de volta a Graça Moura. Porque quando ele escreve publicamente sobre Camões e Os Lusíadas (e quem diz Graça Moura diz quase toda a gente), não é apenas nem sobretudo a arte da obra que está em pauta mas sim Os Lusíadas e Camões como paradigma de toda uma pedagogia, infelizmente perdida, se assim o posso dizer. Atrevia-me mesmo a chamar-lhe uma paideia. E aí, creio que voltamos ao mesmo, ou estou enganado?
- Parece-me a mim que está muito certo, Groucho. Estas questões do relativismo, como diria o conselheiro Gama Barros, do Eça, são terríveis. Mudando de exemplo, já reparou como o mesmo grupo de pessoas acima (retiremos agora o Papa do quadro) reage quando se assiste àquele gesto pós-colonial típico que consiste em alguém, a título individual ou colectivo, propor a Portugal, ou a outra nação, que peça desculpa por uma prática do passado que hoje consideramos errada? A escravatura, por exemplo. Acho muito curioso como todos estes filhos dilectos do universalismo humanista nessa altura recorrem a argumentações relativistas para porem de imediato de lado a hipótese de um pedido de desculpas (que a mim me parece discutível, embora por outras razões): a escravatura já existia em África antes dos europeus a praticarem, etc. Fica-se com a ideia de que estes nossos amigos praticam todos, em perfeita boa consciência, uma espécie de relativismo à la carte. Ou que, para parafrasear o Stanley Fish de há uns anitos, «o humanismo é sem consequências».
- Pois é. A propósito de tudo isto, Sr., não deseja um chá do Nepal? Acabadinho de chegar do nosso fornecedor em Londres.
- Não digo que não, Groucho. Afinal de contas, não serei eu a proclamar a superioridade ontológica dos vinhos do Douro sobre o chá do Nepal (e Deus sabe como eu gosto dos vinhos do Douro…). Deixo isso para o Vasco Graça Moura. Ou para o José Manuel Fernandes.