28 junho 2005

Algumas considerações sobre parasitas, por Groucho

Estava eu posto em sossego, dos meus anos gozando o doce fruito termal, quando a leitura da intervenção do Sr. Baptista sobre parasitas suscitou em mim o incontinente desejo de intervir (coisa muito do Casmurro, e aliás destes tempos). Vejo-me pois na necessidade de intervir na contenda, actualmente bem acesa, em torno dos direitos fundamentais dos utentes dos blogues: sim ou não à caixa de comentários?
Longe de mim discordar das conclusões do Sr. Baptista, no que tange sobretudo à inibição definitiva (que ele bem descreve como profiláctica) do «direito» dos leitores a tornarem-se ínvios co-autores de blogues. Não divergindo porém da conclusão, devo manifestar discordância quanto a um ponto (melhor se diria: quanto a um termo que é um conceito que é uma política) para o qual o Sr. Baptista mobilizou os bons serviços de uma palavra tão rica quanto antipática: «parasita». Nas suas definitivas palavras, «a caixa de comentários é o parasita dos blogues».
O meu problema, confesso, é esta relação binária entre blogue e parasita, como se blogueiro (isto deve ser brasileirismo, mas é gostoso…) e parasita pertencessem a duas ontologias e éticas diversas. Ora, eu sou re-espectador obcecado da saga Alien, com Sigourney Weaver (……), e releitor aturado do ensaio do Sr. J. Hillis Miller «O Crítico como Hospedeiro» - obras ambas da especial predilecção do Sr. Baptista, ao que sei – e tenho dificuldade, por essa razão, em praticar essa dicotomia. A ideia que subjaz às palavras do Sr. Baptista é a de que o parasita invade e destrói a hospedaria-blogue, segundo o modelo de uma invasão bélica e viral (sendo aqui o vírus, para falar curto e grosso, a javardice). Mas o Sr. Baptista decerto não desconhece as infinitas complicações desta situação, como Alien evidencia e o Sr. Hillis Miller tão brilhantemente desconstrói ao chamar a atenção para o facto de as palavras em «para» serem intrinsecamente fendidas, pelo que a ideia de uma linha limítrofe entre dentro e fora não funciona de todo (a própria palavra é em si fendida e ambígua). «Para», como prefixo, lembra o Sr. Miller, «indica ao longo de, ao lado de ou próximo a». Numa derivação etimológica – qual o neto de Heidegger e filho de Derrida que não as aprecia, sejam elas precisas ou imaginativas, como tantas vezes as do avô… – o Sr. Miller lembra aliás que parasita vem do grego «parasitos», «ao lado do grão»; e que o parasita era originalmente alguém que se convidava para partilhar da nossa comida.
Depois, como sabemos, o termo passou a designar o «convidado profissional», o «penetra», para usar uma tão sugestiva palavra lusa (e convém lembrar que os penetras se chamam hoje em Itália, por razões de ordem histórica, «portoghesi»). Tudo isto para voltar à questão com uma citação final do Sr. Miller: «O hospedeiro e o parasita um tanto sinistro ou subversivo são companheiros que compartilham a comida. Por outro lado, o próprio hospedeiro é a comida». Brrr! Mas a história não acaba aqui, pois numa reversibilidade de lato alcance político, afirma o Sr. Miller, ao concluir outra derivação etimológica: «Um hospedeiro é um hóspede e um hóspede é um hospedeiro».
Peço desculpa por este momento eugéniolisboeta, mas vi-me forçado a citar com alguma abundância. A minha questão é esta, se me é permitido divergir de tão especioso espírito quanto o do Sr. Baptista: é justo fechar profilacticamente a caixa de comentários de um blogue a uma invasão de javardice; mas é perigoso, e a meu ver incorrecto ética e politicamente, fazê-lo nos termos activados pela questão do «parasita». Porque, antes de mais, há-de o Sr. Baptista reparar que a lógica da blogosfera é toda ela uma lógica parasítica. Os blogues alimentam-se de tudo e nada, e sobretudo uns dos outros. O post é justamente essa transformação de tudo em alimento e, na sua hysteresis constitutiva (nós bem temos assistido a isso, neste clube…), a própria transformação da escrita em parasitagem indomesticável e como que autoalimentada. Posthesis universalis, se me permite o desforço moderadamente gracioso.
Suponho aliás que o momento em que a natureza parasítica do blogue vem à tona é esse tão estranho processo, em vias de não menos estranha normalização, da edição do blogue em livro (para quando o do Casmurro, editores distraídos?). Mas não é o blogue a própria contestação, na sua ontologia e economia mediáticas, da forma-Livro? Aberto vs fechado, processualidade vs cristalização, fragmentação vs organicidade, etc.? Manifestamente não, não é, pois isto não funciona, e o que de facto ocorre é uma suplementação infindável, como diria o Sr. Derrida, em que o blogue anseia pelo livro e o livro hospeda o blogue, que afinal não é blogue sem essa parasitação do livro com que desde sempre sonha sonhos na sua maioria inconfessáveis.
De forma homóloga, eu diria (e tentarei terminar, para não me acusarem de não saber escrever para blogues) que o blogue se distingue dos outros média do espaço público por algumas coisas reconhecíveis – leveza do meio, instantaneidade, etc. –, sendo uma delas, e das mais decisivas desde o início, a interactividade com os leitores. Compreendo, e apoio, a recusa de permitir que os comentários criem um blogue paralelo; mas creio que é a própria diferença do medium que é afectada pela impossibilidade de manter o canal aberto. Na eventualidade de todos os blogues adoptarem a mesma política, em que é que a blogosfera seria uma realização mais perfeita do ideal burguês da esfera pública do que o universo da imprensa tradicional? Apenas por permitir mais palradores? Mas uma política de plena (?) liberdade expressiva não tem de ser mais do que isso; e sobretudo, nada garante que isso venha a ser de facto uma política. Pode ser apenas (e tantas vezes é) um desbordamento narcísico. Talvez isto signifique simplesmente que não devemos alimentar ilusões habermasianas sobre as virtualidades, e mesmo sobre a possibilidade, desse ideal. Mas então convirá baixar a temperatura da utopia política no discurso sobre a blogosfera.
O ponto porventura final da minha arenga seria este: eliminar comentários é eliminar uma forma indesejável de parasita, mas não significa de todo o fim da figura do parasita, sem a qual, insisto, não haveria posts, blogues e blogosfera. O Sr. Baptista, por exemplo, aprecia parasitar «os tropos na vida quotidiana» e fazer deles posts esmagadores de disfarçada erudição e inabalável humor; e os outros cavalheiros do clube, mais ou menos parasitam a vida cultural e social da nação, ou da e-nação.
Espero contudo não surpreender ninguém se afirmar de novo a minha concordância com a posição do Casmurro, e do Sr. Baptista, em relação à caixa de comentários. Por uma razão apenas: precisamos demasiado da figura do «parasita» (admitamos aqui as aspas que este meu post solicita para a personagem) para nos confiarmos ao desastre de a confundir com o simples javardo. Um grunho – por exemplo, aquele «amigo da rapaziada» que praticamente provocou sozinho o encerramento dos comentários do Da literatura - não é um parasita, pela simples razão de que nada nele põe em causa, de forma mais ou menos radical, a ordem ética, social e política em que vivemos (aquilo que, pelo menos eu, espero de um «parasita»). Um grunho é simplesmente um grunho, isto é, alguém com quem não partilharíamos um banho numas termas tão distintas como as de S. Pedro do Sul.
E permitam que me retire, pois é tarde, pedindo antecipadas desculpas pela eventualidade de os haver maçado a hora tão imprópria.